Mercado
Café para o Capital
São Paulo, 26 de abril de 2012    

Por Celso Luis Rodrigues Vegro, José Sidnei Gonçalves e Paulo Henrique Leme (*)

Na trajetória da história humana, o estágio da produção industrial é um fato recentíssimo. A herança agrária, ao contrário, está incrustada no DNA do processo civilizatório. Disso resulta que muitas das transformações históricas e processos de diferenciação dos povos e civilizações devem ser perscrutados a partir da forma como singularmente se organizou a produção rural e a distribuição de gêneros oriundos da agropecuária (alimentares, vestuário, moradia). Desde a revolução agrícola neolítica em que foi domesticada grande parte das espécies vegetais cultivadas na atualidade e, concomitantemente, iniciou-se a seleção genética dos animais de criação; passando pelas civilizações hidroagrícolas (mesopotâmica; delta do Nilo; indoasiáticas); a segunda revolução agrícola no florescimento grego (introdução da charrua à tração animal e do pousio); o surgimento dos sistemas agropecuários integrando florestas e criações típicos da idade média; os patamares de altitude andinos, até as revoluções agrícolas dos tempos modernos (quimificação, mecanização e genética – bio e nanotecnologias), propiciaram saltos de produtividade e incremento da diferenciação social por meio da melhoria da alimentação em quantidade, qualidade e diversidade. O êxito na organização de sistemas de produção de alto rendimento assegurava a nutrição adequada de suas populações, maior força às cidades/estados, de seus exércitos e condições de se firmar no contexto das disputas territoriais regionais.
Assim as inovações agrícolas e os sistemas de produção agropecuária vinculada a logística de suprimentos, têm sido os propulsores de maior impacto no processo de avanço da civilização. Sobre uma sólida base agrícola foi que se gerou um futuro viável à humanidade. Imaginar os tempos modernos apenas como retratou o insuperável Chaplin não passa de miopia histórica, enquanto que compreender acertadamente a evolução da agricultura, suas transformações e como tais fenômenos moldam a dinâmica sócio-econômica é necessidade inescapável do cientista que tenha a intenção de analisar esse segmento.
Concentrando-se no período que vai do pós-guerra até nossos dias, pode-se caracterizá-lo como de rápida transição agrícola. O fenômeno que resultou no processo de industrialização da agricultura foi imaginado, primeiramente, por Rangel (1954) quando assim o descreveu:
“As tarefas de elaboração dos produtos primários são realizadas em unidades especializadas (fábricas) o que implica em criar um setor novo, fora da agropecuária mas dentro do país. Esse setor é a manufatura ou no sentido corrente a indústria. É a criação desse setor que muda toda dinâmica da economia" (1)
A dinâmica da economia rural a que se refere Rangel é da substituição da centralidade político/econômica do capital agrário (propriedade fundiária) pelo capitaneado pela agroindústria. Perde relevância a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo, ganhando evidência a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Essa mudança de representatividade setorial serve como boa imagem da transformação ocorrida em âmbito da agricultura em sua orientação rumo a grau crescente de complexificação.
Nessa trajetória ocorre outra modificação igualmente crucial. A transição atual é regida pela imposição da modalidade ampliada de reprodução do capital (pertencente à agricultura moderna de base financeira/industrial) e supressão (por meio da concorrência em preços com auxílio de políticas públicas mal desenhadas) da reprodução simples (prevalecente na agricultura de cunho autárquico – com pouco emprego de insumos extra-segmento ainda que de base mercantil). Sob a reprodução ampliada do capital, avoluma-se o montante de dinheiro empregado para a produção de mais dinheiro (amortização e apuração de lucro) (2) com estágio intermediário, porém necessário, na mercadoria. Esse dinheiro empregado inicialmente possui uma composição orgânica em que a proporção de trabalho morto (máquinas, equipamentos, instalações) supera muitas vezes o de trabalho vivo (salários). Sob essa determinação, a mobilização do capital somente acontecerá mediante “relativa” certeza de obtenção de lucro. Assim, na agricultura moderna de base capitalista, o esforço não está direcionado para a produção de alimentos e matérias primas, mas de lucros.
A industrialização da agricultura acelera-se com a intermediação financeira tanto por sua condição de centralizar capital (crédito a juro compatível) como ser racionalizadora e última instância de conjunto de necessidades do padrão agrícola industrial: sustentação dos riscos de preço (hedge); uniformização de qualidade (contratos em bolsas) e agronômico (seguro). A racionalização financeira confere a esse segmento a instância mais privilegiada e última de concentração do capital (3).
O padrão agroindustrial moderno ainda não está pleno em todos os segmentos, existindo espaços que, ainda, não superaram completamente os sistemas de produção tradicionais da agropecuária. A cafeicultura brasileira é um exemplo dessa dicotomia, pois percentual significativo dos estabelecimentos (4) pertence aos cafeicultores de perfil familiar, em que prevalece uma estratégia de reprodução familiar pautada pela diversificação produtiva e produção visando à possibilidade de aquisição de outras mercadorias internamente à propriedade não produzidas (5).
Existem do ponto de vista da reprodução do capital, dois tipos de cafeicultores, aqueles em que a lógica financeira/industrial domina a organização do processo produtivo e os outros em que o foco é a manutenção familiar com suficiente dignidade. Esse recorte estabelecido a partir da lógica de reprodução do capital permite alocar esforço de coordenação nos vetores de maior possibilidade de êxito. Para o primeiro caso a obtenção de graus de liberdade diante da gangorra dos preços é posicionamento estratégico mais acertado. Nesse caso o principal direcionamento consiste em elaborar uma bem traçada política comercial. Já para os familiares o empenho em coordenação deve focalizar as ações mutualísticas com ênfase nas estruturas associativas e cooperativas.
A harmonização de interesses (explícitos ou difusos) depende do reconhecimento ex ante dessas modalidades de cafeicultura. Naquela industrial/financeira, as ações visando a melhoria do contexto de previsibilidade de reposição do estoque de capital com a captura de lucro formam as condições mais propícias para a implementação de ações de coordenação, enquanto que entre os familiares com talhões de exígua dimensão podem, eventualmente, serem mobilizados mediante interesses não imediatamente vinculados ao lucro. A certificação de qualidade ou a criação de uma marca regional, por exemplo, podem resultar positivamente quando o rol dos interessados for majoritariamente formado por cafeicultores familiares. Políticas de opções públicas, subvenção para a contratação do hedge e do seguro são pilares coordenativos para os produtores empresariais com avançado processo de industrialização de sua cafeicultura.
A constituição dos chamados clusters produtivos (Cerrado Mineiro, por exemplo) orientam-se, justamente no sentido de criação de ambiente de negócios mais propenso à captura de lucro. A estrutura de apoio à cafeicultura do Cerrado Mineiro: faz assessoria à contratação de hedge; promove o marketing coletivo na promoção da origem e supervisão do uso do selo de identidade regional; organiza a logística de exportação e aquela destinada ao mercado interno. Esse arranjo técnico/produtivo/comercial corrobora a hipótese de que ao se concentrar na comercialização e na assessoria na mitigação do risco de preço, mais propício se configura e mais cristalizaram os mecanismos de coordenação. Evidentemente que cafeicultores familiares e médios cafeicultores, beneficiam-se dessa organização (como de fato ocorre no Cerrado), mas o leitmotiv desse ordenamento é a pavimentação de um caminho que conduz ao lucro!
Ambos os modelos de cafeicultura subsistem nos cinturões produtores brasileiros. O avançado e moderno não logrou superar o familiar. Todavia, fatia crescente do suprimento em café ao mercado, já se origina em propriedade acima dos 30ha (6). Para esses, aprimorar o arcabouço das políticas de proteção de preço, mitigação dos riscos e estatísticas de qualidade são as formas de coordenação mais acertadas. Situados abaixo daquela dimensão temos uma miríade de cafeicultores demandando políticas de apelo quase que social. Coordenação para esses deve ser pautada por um bom serviço de assistência técnica e extensão rural, capacitação dos jovens, organização associativa/cooperativa, ordenamento fundiário e, eventualmente, estruturação de campanhas visando a concretização de interesses difusos (certificação em grupo, unidades de preparo comunitária, criação de marca, etc...). Essas iniciativas de caráter difuso, para alcançarem êxito demandam antes o bom funcionamento das políticas públicas de base.
O domínio teórico das temáticas que se aplicam aos fenômenos sócio-econômicos é condição fundamental para que as ações implementadas não padeçam de voluntarismo. Delimitar e caracterizar com nitidez o campo de atuação sempre será a forma de melhor se movimentar, ainda mais em terreno tão pantanoso como é a cafeicultura brasileira. Finalizando vai a dica de pesquisador experiente: toda a vez que tiver diante de si uma saca de café imagine imediatamente um pacote de capital!

(1) RANGEL, Inácio. El desarollo económico en Brasil. Santiago do Chile: CEPAL, 1954, 167 p.

Nesse livro é pela primeira vez delineada ideia de industrialização da agricultura antes, portanto, dos estadunidenses Davis & Goldberg que, apenas em 1956, cunharam o termo agribusiness. Por princípio de justiça e de reconhecimento a um dos mais brilhantes economistas brasileiros, abdicarei definitivamente da expressão agronegócios e passarei a utilizar apenas agricultura para significar o processo de inovação tecnológica e amplificação da produção de riquezas com elevada integração em cadeias de produção como lastro de complexas redes de negócios. Para designar as atividades rurais (dentro da porteira) utilizarei a expressão agropecuária.

(2) A identidade criada por Marx D-M-D’ (reprodução ampliada) forma a base desse raciocínio.

(3) Os resultados dos balanços trimestrais dos bancos brasileiros demonstram essa assertiva.

(4) Detalhes sobre a dimensão dos talhões podem ser obtidos no link: http://ftp.sp.gov.br/ftpiea/publicacoes/IE/2010/ie-1210.pdf

(5) A outra identidade criada por Marx M-D-M’(reprodução simples) forma a base desse raciocínio.

(6) Uma lavoura com 30ha demanda, necessariamente, a introdução de máquinas em seu manejo, por isso a delimitação dessa dimensão para efeito de caracterizá-la como pertencente ao grupo da agricultura moderna.



(*)Celso Luis Rodrigues Vegro é Eng. Agr., M.S. Desenvolvimento Agrícola e Pesquisador Científico do IEA, celvegro@iea.sp.gov.br
(*)José Sidnei Gonçalves é Eng. Agr., Dr.Ciências Econômicas e Pesquisador Científico do IEA,
sydy@iea.sp.gov.br
(*)Paulo Henrique Leme é Mestre e Doutorando em Adm. de Empresas, Consultor Marketing Estratégico no Agronegócio da P&A Marketing Internacional, phleme@peamarketing.com.br
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