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Leite derramado | |||
São Paulo, 17 de abril de 2011 | |||
Celso Luis Rodrigues Vegro(*) Empresto o título do último livro do escritor e compositor Chico Buarque (premiado com o Jabuti em 2010) para, igualmente, nomear esta análise do mercado de café. O escritor, em seu livro, discorre sobre a evolução de uma família ao longo de dois séculos, enfatizando sua decadência e seu futuro pessimista. A metáfora é evidente, o autor sugere por meio da saga familiar a própria trajetória do esforço em construir a nação brasileira. Por acaso, também, temos nosso leite derramado no agronegócio café e por essa razão faço proveito desse título. Derramar leite no café é o hábito rotineiro de milhões de brasileiros logo pela manhã. Sem um quente pingado muitos se recusam em começar seu dia. Mas a derrama da qual pretendo tratar é de outra natureza, mais séria e menos humorada. Um dos maiores dilemas do crescimento econômico brasileiro consiste na dificuldade em construir uma indústria com relevância global. Dos anos 30 ao final dos 70, nossas elites políticas e intelectuais imaginaram que se havia alcançado essa etapa do desenvolvimento, pois o país crescia, ano a ano, a dois dígitos ou muito próximo desse patamar. Ao início dos anos 80 o Brasil era a décima primeira potência mundial! Todavia, a autarquia sob a qual se erigia o setor industrial criava gigantes conglomerados com pés de barro e a pequena abertura que se iniciou nos anos 90 mostrou suas patentes deficiências. Os anos 80 até meados dos 90, assinalaram o período hiperinflacionário na economia brasileira e foram marcados pelas inúmeras tentativas em se debelar as causas desse processo. A chamada inércia inflacionária fazia parte do cálculo empresarial e financeiro, criando uma espécie de ciranda em que havia pouquíssimos ganhadores. Naturalmente o país parou de crescer economicamente. A indústria dita: “complexa e integrada”, substitui a insubstituível melhoria contínua pelas facilidades do resultado financeiro, oriundo da aplicação desbragada de seus ativos no atrativo mercado dos títulos. A implantação do Plano Real foi um marco divisório na trajetória recente da economia brasileira. Naquele momento a autoridade econômica conseguiu colocar a inflação em posição de xeque mate. Recupera-se o horizonte para o investimento e a indústria passa a apostar em perspectivas de um crescimento vigoroso nas décadas vindouras. Foi o que de fato ocorreu, sendo o caso da indústria automobilística um paradigma dessa transformação (das carroças dos anos Collor para veículos de classe internacional na atualidade). Adentrando nos anos 2000, a política econômica passa a se sujeitar a uma espécie de sinuca cambial incontornável. O patamar de juros referenciais exigidos para frear o crescimento e segurar a inflação associado ao acúmulo monumental de reservas internacionais, passa a pressionar de tal modo o real que não se tem escapatória, seu destino é ganhar mais e mais valor frente ao combalido dólar. Se o fim da inflação crônica permitiu um salto no patamar da produção e da produtividade da indústria brasileira, a apreciação da moeda está, na contramão, sufocando o êxito anterior. A trilha para o desastre somente não é mais direta devido ao vigor com que o mercado interno se expande, inclusive, a taxas que sinalizam prováveis bolhas de ativos (financiamento de veículos e imóveis) em futuro próximo. Sob a sinuca cambial cria-se situação em que não há como se inserir no mercado internacional por perda de competitividade em preços. Algumas raras exceções podem ser relacionadas, como: Vale; Petrobras; Embraer; BR Foods; JBS; empreiteiras e mais poucas outras que não cobrem sequer os dedos das mãos, faz da indústria brasileira algo descartável no panorama internacional. Essa tese formulada pelo brilhante professor Antônio Barros de Castro é sem dúvida uma constatação legítima e verificável empiricamente(1). Matérias primas básicas e de baixo valor agregado ou de reduzido conteúdo tecnológico compõe a fatia majoritária de nossas exportações. Para exemplificar o atraso de nossa indústria tomo o exemplo da Coréia. Nos anos 80, recém saída de uma brutal guerra, tinha em sua Hyundai uma das suas empresas mais relevantes, porém, comparativamente a brasileira Votorantim, sequer alcançava à época metade do faturamento dessa última. Em 2010, a coreana vendeu US$112,6 bilhões e a brasileira apenas US$17,5 bilhões(2), ou seja, em 20 anos ocorre uma dramática inversão com a coreana já negociando 6,5 vezes mais que a brasileira. Essa é a dificuldade brasileira, grupos empresariais anêmicos e sem expressão global. Sem a robustez necessária para se posicionar na teatro internacional, os grupos empresariais industriais brasileiros não conferirão o suporte para que a economia nacional seja verdadeiramente pujante. Porém há um segmento em que essa possibilidade se concretizou: o agronegócio. A liderança mundial em suco de laranja; complexo soja e carnes; café; sucroalcooleiro e celulose, por exemplo, faz do Brasil referência sem igual no competitivo mercado mundial das commodities e suas congêneres. Não se pode desprezar o papel dos bancos públicos na estruturação das empresas bem sucedidas do agronegócio. Recentemente ocorreu o investimento direto do BNDES no frigorífico JBS, financiando suas aquisições nacionais e internacionais. Por meio desse maciço investimento público o grupo empresarial assumiu a liderança mundial no abate e processamento de carne bovina. Análise sobre os benefícios dessa concentração de capital sustentada pelo apoio governamental foi recentemente delineada pelo economista José Mendonça de Barros(3). O consultor destacou o pífio resultado da vultosa injeção de recursos públicos nessa estratégia, perguntando-se sobre a validade de tal política. O crescimento em tamanho não repercutiu nos esperados ganhos de escala, sinalizando, ao contrário, deseconomias com unidades inclusive sendo paralisadas. O resultado mais expressivo do portentoso grupo foi à falência de outros médios e pequenos frigoríficos menos capitalizados. O aparente fracasso na constituição desse musculoso grupo empresarial brasileiro em carnes, não descarta que em outros segmentos o esforço não deveria ser tentado. A intenção de desmembramento da Sara Lee, com a venda de seus ativos em café no Brasil, deveria ter sido aproveitada. Algum apoio do BNDES deveria ser oferecido a grupo empresarial que fosse capaz de assumir esses ativos, com o compromisso de exportar pelo menos 30% de seu processamento anual e, ainda, promover de forma engajada a melhoria do café oferecido aos brasileiros, traria resultados formidáveis para o agronegócio. A dificuldade maior se centraria em selecionar esse grupo empresarial(5) com ímpeto necessário para tomar conta do negócio e fazê-lo crescer exatamente nos moldes do atual ícone mundial do segmento: a NESPRESSO. Sem empresas globais no mercado de café as chances do Brasil se converter numa plataforma de negócios do produto são muito reduzidas, senão inexistentes. Continuaremos a nos chatear ao constatar que a Alemanha continua ganhando mais que o Brasil, atuando exatamente com o nosso café. As exportações de torrado e moído (T&M), por exemplo, após longos dez anos de apoio público por meio da Agência de Promoção das Exportações (APEX)(6), se reduziram de US$40 milhões em 2009 para metade disso em 2010. Pior ainda, por miopia de lideranças da lavoura, fortalece-se a proibição do drawback café, regulamento demandado pela indústria do solúvel, atuando assim como carrasco do segmento incumbindo em puxar a alavanca do cadafalso que dela dará cabo. A concentração do capital na indústria de T&M no mercado doméstico segue em ritmo forte, mas ainda incapaz de constituir grupos empresariais que façam alguma diferença no cenário internacional. A escalada das cotações tratará de colocar inúmeras delas à venda, pois o oligopólio competitivo do varejo resistirá duramente à remarcação dos preços. O contexto é ainda piorado pela falta de tradição dos torrefadores em não se proteger das oscilações nas cotações e não transferir seus riscos por meio de títulos adquiridos em bolsa, pois a qualidade oferecida nos contratos daquele mercado encontra-se muito acima de suas aquisições usuais. Leite derramado! Agora já é tarde para lastimar a oportunidade perdida. Arrependimento, nem pensar. A chance de sermos grandes no segmento de T&M esteve em nossos colos. Daqui em diante como desde sempre tem sido, veremos um salve-se quem puder, com a tradicional indústria tecnologicamente atrasada piorando seu blend de forma escandalosa; o governo se omitindo em fazer valer imediatamente a Instrução Normativa 16; os órgãos de defesa do consumidor totalmente alheios à desfaçatez empresarial em encharcar bastante o café e a população subjugada a um produto, majoritariamente, além de caro, vil e miserável. (1) LEO, S. Desenvolvimento asiático pode ajudar a indústria brasileira. Jornal Valor Econômico, 03/04/2011, pg. A3. (2) Consultar os respectivos balanços disponíveis em: worldwide.hyundai.com e www.votorantim.com.br (3) BARROS, J.R.M. de. JBS: vale a pena um campeão nacional. Jornal o Estado de São Paulo, 07/11/2010. (4) Disponível no site: www.agricultura.gov.br (5) Torrefadoras como Café Maratá e Oderbrecht certamente não devem sequer ser cogitadas para essa parceria por motivos que todos os concorrentes desse mercado conhecem. (6) Mais um caso daqueles em quem decide como aplicar os recursos públicos não se submete aos interesses da sociedade, privilegiando castas burocráticas e suas viagens internacionais, recheadas pelas polpudas diárias, estandes luxuosos rodeados por pares de modelos selecionadas nas mais destacadas agências mundiais. (*)Celso Luis Rodrigues Vegro é Eng. Agr., MS Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade e Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola, IEA, órgão da Agência Paulista de Agronegócios, APTA, ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, SAA. celvegro@iea.sp.gov.br |
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