Mercado
Deus é brasileiro?
São Paulo, 27 de janeiro de 2011    

por Celso Luis Rodrigues Vegro (*)

Aqueles que nesse espaço me acompanham, sabem que este escriba não é dado aos exageros, a não ser os da retórica argumentativa e de suas conseqüências. A escolha desse título atrai leitores mais curiosos que, ao se deparar com as chatices da economia agrícola, logo partem para outro assunto menos pantanoso, quer pela imprecisão intrínseca ao método de análise empregado nessa ciência, quer pela sua incapacidade de imaginar um futuro plausível para os fenômenos que, por pressuposto, busca elucidar. Portanto, meu leitor ou minha leitora, vá com calma e não exagere.
Em ciência não se deve adotar posturas nem otimistas nem pessimistas. O posicionamento perfeito é o da cautela (por sinal muito difícil de praticar, pois todos nós somos cavalgados pelas paixões). Também, não pode a ciência almejar o papel de neutralidade, pois por detrás desse écran há um indivíduo, disposto a empregar sua massa cinzenta, na produção de inteligência e que está, necessariamente, sujeito às experiências vivenciadas e por uma singular visão de mundo.
Preparar um balanço de 2010 e buscar perscrutar 2011 é o desafio imposto. Fica um bocadinho mais fácil já que o ano novo finda seu primeiro mês. A produção de balanços e perspectivas é uma demanda muito corriqueira na troca de calendário, especialmente, por parte da mídia que se diz especializada em temas do agronegócio. Todavia, não é o momento razoável para a geração de tais análises, uma vez que, tanto ano fiscal como o civil não se sobrepõe ao cafeeiro, esse último, iniciado em agosto de 2010 e por se encerrar somente em julho de 2011.
Na preparação de balanços, usualmente, se emprega o método da observação do passado para interpretar as tendências prevalecentes e a consulta ao “oráculo” para produzir as tais das perspectivas. Porém, as estruturas sócio-econômicas estão submetidas a um tão grande volume de eventos incontroláveis com seus infinitos desdobramentos que, humildemente, temos que abrir mão da pretensão ao conhecimento e apenas assumir, discretamente, alguns possíveis cenários extraídos da experiência acumulada. Mesmo este pesquisador considerado pelos menos como “tarimbado” e ainda que bem intencionado, produz informações no máximo temerárias.
Grande foi esse prelúdio, está na altura de passar para o andante. A primeira pergunta que demanda posicionamento é: O PIOR JÁ PASSOU? A crise econômica de 2008/09 nos EUA e em 2010 na União Européia (especialmente nos países de sua periferia econômica em estado pré-falimentar); somado ao contexto duríssimo de guerra cambial entre chineses e estadunidenses (que empurram o passivo monetário para o resto do mundo) e ao retorno das cotações das commodities para patamares pré-crise, denunciam que ainda não se alcançou momento muito promissor para a economia mundial, ainda que a capacidade empreendedora dos empresários estadunidenses seja louvável (crescimento econômico de mais de 3% quase sem gerar empregos). Os anos 2000, até o surgimento da crise, exibiam formidável expansão com crescimento do PIB mundial similar somente ao observado no pós II Guerra Mundial. Teria sido uma década preciosa para a diminuição da pobreza com melhoria significativa das condições de bem estar das nações, cujas populações ainda coexistem em situação de risco humanitário. Porém, a crise desfez o cenário veludo que se estabelecia para antecipar aquilo que acredito venha a ser o conceito que melhor definirá esse próximo período: “A DÉCADA DA ANSIEDADE”.
As mudanças climáticas somadas a escassez alimentar; oferta energética cada vez a custos mais dispendiosos; incremento da hostilidade bélica (vide o quase conflito entre as Coréias); o crescimento das migrações humanas e seu contra-efeito com aumento da xenofobia e do racismo e a falência de nações sem perspectivas quanto ao equacionamento do endividamento crônico sob juros crescentes, formam juntos esse cenário recém inaugurado da “década da ansiedade”.
Atualmente, vem dos chamados BRICs a contribuição dinâmica para o crescimento mundial, estando a China e a Índia encabeçando esse movimento e os demais (Brasil e Rússia) contribuindo apenas marginalmente ao processo. O motor de propulsão asiático não deve arrefecer em 2011, enquanto os demais países percorrerão um período menos pujante comparativamente a 2010. No Brasil isso já realidade com a elevação da taxa SELIC e viés de alta para a próxima reunião de COPOM. Deter a chamada inércia inflacionária, que assombra a economia brasileira desde o surgimento do plano real, é tarefa para a qual a autoridade monetária precisa se manter permanentemente vigilante(1). Alternativamente, a estratégia de cortar os gastos públicos também se tornou menos plausível, pois somente com tragédias derivada das catástrofes climáticas em todo o território consumirá uns bons bilhões de reais dos cofres públicos. Sem cortes profundos no orçamento, as chances de crescimento vigoroso em 2013 e 2014, tornam-se ainda mais improváveis.
Em realidade a escalada inflacionária é um problema global. A China e a Índia já assistem seus respectivos índices de inflação galgar patamares mais elevados a cada mês que se encerra. Os grandes estoques acumulados no período de baixos preços arrefecem o vigor das majorações, mas assim que esses estoques forem consumidos, a questão inflacionária será ainda mais preocupante e relevante na orientação da ação das autoridades monetárias locais.
O mercado de commodities mantém cotações em elevação pelas mesmas razões que prevaleceram entre 2007 e 2008: o apetite chinês! Tomando o caso do minério de ferro brasileiro, por exemplo, em 2010, exibiu 70% de incremento nos preços e ainda assim foi o primeiro item da pauta de exportações do país, suplantando o posto até então ocupado pelo complexo grão/farelo/óleo de soja. Moral da história, mesmo quase dobrando os preços, a China manteve sua demanda pelo minério de ferro, fenômeno que reproduz para as demais commodities, tanto metálicas como agrícolas. Nesse aspecto a condição de relatividade dos preços uns para com os outros é inescapável.
Nas commodities, a ansiedade poderá ser pautada pela escalada das cotações e a ampliação de sua volatilidade. Na prática isso já está acontecendo desde que a autoridades monetárias estadunidenses resolveram injetar US$600 bilhões para dinamizar sua economia. Grande parte dessa liquidez excedente buscou nas commodities agrícolas um refúgio mais seguro, incrementando a alta nas cotações para além dos fundamentos que regem cada mercado específico.
Para o mercado de café teremos em 2011 uma repetição do segundo semestre de 2010. A produção colombiana padecendo com a proliferação desenfreada da ferrugem nas lavouras agravando ainda mais o quadro de oferta aquém das necessidades mundiais. Os países centro-americanos não reúnem condições para expansão da oferta de café, pois enfrenta dificuldades com a arregimentação de mão de obra e, excetuando-se a Costa Rica, prevalece o emprego de tecnologia rudimentar com baixa produtividade (nas lavouras a pleno sol). Na África a conflagração na Costa do Marfim afugenta os importadores devido ao risco intrínseco de negócios em tal contexto. Embora com vastas regiões aptas para a cafeicultura, os demais países se mantêm como uma promessa para o futuro, mais destacada pelo lado do consumo do que da produção. Finalmente, a Ásia com o Vietnã e a Indonésia sem grandes saltos na oferta devido a baixa valorização do robusta e ao aumento dos custos de produção decorrente do processo inflacionário que nesses países também se instalou.
Os estoques minguados e a safra de baixa no Brasil adicionam os componentes de ansiedade ao mercado de produto. Em contrapartida, o consumo mundial recebe dois novos importadores: os ex-exportadores México e Índia, que assistem em seus territórios o boom das casas de café, tornando-se essa a bebida do momento. Em face desse cenário, a OIC terá que exibir imensa criatividade para elaborar estratégias conjuntas com seus países signatários, visando mitigar a escalada da ansiedade no mercado de café.
O agronegócio café continuará a toada anterior de novo recorde de valor dos embarques que se somará ao destacado vigor do mercado interno. A majoração dos preços para importadores e para consumidores, ainda, não foi capaz de reverter a inelasticidade característica do produto, mesmo considerando que possa haver uma inversão nas taxas de crescimento da demanda em favor do consumo dentro do lar (comparativamente ao consumo fora do lar).
A menor quantidade de café a ser colhido no Brasil (entre 41 e 44 milhões de sacas), favorece a produção com qualidade, incrementando ainda mais o interesse pelo café brasileiro cuja reputação não para de crescer e convencer. A oferta de marzanha(2) é algo que fica para os registros do passado. Por sua vez, a administração pública já experimentou políticas pró-mercado com grande êxito e se prepara para a criação de um programa de seguro rural associado a um fundo de catástrofe o que confere solidez as estratégias de garantia de renda no campo(3). Os preços recebidos pelos cafeicultores de arábica conferem melhores condições de administração dos passivos financeiros pendentes. Já os cafeicultores de robusta, ainda sem experimentar a elevação das cotações para seu produto, logo poderão participar da alta, pois o varejo deverá forçar os torrefadores a diminuir seus preços via alteração da liga e assim garantir preços competitivos para o produto. A batalha contra a inflação tem um de seus capítulos na peleja entre torrefadores e supermercadistas.
Do ponto de vista da pesquisa e da extensão percorremos o período mais favorável para o encurtamento do desnível tecnológico existente entre os diversos cinturões produtores e dentro das diversas tipologias (empresariais, médios, familiares, assentados). Os tradicionais eventos em café deveriam empenhar-se ao máximo para atrair a atenção dos cafeicultores antes que outros o façam.
O mundo ainda padece dos efeitos da crise econômica mundial. O crescimento da economia mundial parece garantido em 2011. Se a inflação em alimentos amedronta a humanidade, os produtores terão nesse período que vivenciamos um dos mais prolíficos, especialmente, para a cafeicultura brasileira. Tal contexto permite asseverar que se Deus não é brasileiro, ao menos deva falar nosso bom português.

(1) Em 2010 o INPC elevou-se 6,47% enquanto nos alimentos o salto foi de 10,42%.

(2) Marzanha: palavra criada por mim e pelo amigo Felix Schouchana para designar café ruim. Trata-se do aportuguesamento da palavra veneno na língua etíope.

(3) Pretende-se consolidar conjunto de políticas públicas que permitam a constituição da chamada “classe média rural”, que se mantenha sob qualquer conjuntura apresentada pela gangorra representada pelo mercado.

(*)Celso Luis Rodrigues Vegro é Eng. Agr., M.S. Desenvolvimento Agrícola e pesquisador científico do IEA/APTA/SAA-SP.
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