Mercado
Unidos pela discórdia
São Paulo, 28 de outubro de 2009    
“Bom vinho, bom café, bons licores, são tão úteis
para o corpo como a boa filosofia para a alma”
José Bonifácio de Andrada e Silva

Por Celso Luis Rodrigues Vegro (*)

Uma das expressões mais contundentes que marcam a trajetória da história do pensamento filosófico foi cunhada por Thomas Hobbes (1588-1679), quando inferiu, em seu mais famoso livro: O Leviatã (1), que em função da natureza egoísta do comportamento humano, em estado natural, a sociedade se pautaria por uma espécie de “guerra de todos contra todos” (2). O filósofo defendia que cada indivíduo precisaria abrir mão de parte de sua liberdade e de seu desejo de poder em favor de um contrato social – o Estado, cuja autoridade assegurasse a paz e disciplinasse a vida em sociedade.
Sacramentado está que a existência do Estado, preferencialmente de natureza democrática, é uma das maiores construções sociais que a inteligência humana foi capaz de até hoje desenvolver. Ainda mais agora, pois foi por meio da rápida ação pública que a crise econômica pode ser revertida e felizmente não assistimos a outro fatídico novembro de 1929. Mesmo que o mundo desenvolvido continue sem crescimento relevante pelos próximos dois anos, o estancamento de um efeito dominó sobre a economia globalizada foi fundamental para a suavização da crise, seguida pela emergência dos primeiros sinais de retomada do dinamismo econômico.
Retomar essa perspectiva filosófica para o contexto dos assuntos do agronegócio café mostra-se relevante frente ao momento que ora se apresenta. Quer nos parecer que sob algumas temáticas passou-se a reproduzir cenas de um episódio da “guerra de todos contra todos”. Para se elucidar esse ponto, porém, necessitamos de uma recuperação dos elementos que desencadearam a emergência dessa aparente “guerra”.
Nessa altura dois conceitos econômicos precisam ser recuperados: a) segmentação dos mercados e b) diferenciação de produto. O primeiro conceito compreende a repartição do mercado em grupos (ou segmentos) com características que lhes distinguem. Os fatores que podem permitir a clivagem do mercado possuem diferentes naturezas como: aspectos geográficos, demográficos, psicográficos e comportamentais. Em geral, o fator preponderante na partição do mercado é aquele que possui a capacidade de influenciar diretamente a decisão de compra dos consumidores. Por sua vez, denomina-se diferenciação de produto a atividade pela qual se procura conferir uma qualidade particular a um produto existente. A diferenciação pode ser objetiva quando algum atributo é efetivamente modificado; ou subjetiva, quando por meio de ferramentas de publicidade se firma a crença dos consumidores de que o produto possui qualidades que lhes são exclusivas (3). Nesse caso o papel das reputadas marcas é crucial.
A melhoria dos padrões de bem estar associados às conquistas sociais e ao crescimento econômico, possibilitou que os consumidores modificassem (e continuem modificando), seus hábitos de consumo, agregando à pauta de gêneros de primeira necessidade outros itens que antes poderiam ser classificados como supérfluos ou requintados. Certamente, essa evolução incrementou a demanda por produtos diferenciados e impulsionou o mercado para novos arranjos pautados pela segmentação na oferta de mercadorias.
Nos últimos 30 anos, em algo diferente das demais matérias-primas agrícolas, o café passou pelo já delineado processo de segmentação e diferenciação, fenômenos que quando somados conduziram o produto a um processo de descomoditização. A segmentação do mercado de café é realidade já consagrada. Diferentes tipos de gêneros compõem esse mercado, sendo o solúvel e o descafeinado os primeiros produtos a trilharem o percurso da diferenciação e iniciando uma segmentação real. Depois se estabeleceram os cafés de origem certificada; os produtos gourmet; as ligas de grãos com perfis gustativos complementares; o café para o preparo expresso; os orgânicos; os sustentáveis e os produtos participantes do chamado comércio justo, cada qual representado por selos específicos, empresas certificadoras e/ou por reconhecidas marcas.
Retrocedendo na cadeia de suprimentos deparamo-nos com os dois produtos comercialmente relevantes da lavoura cafeeira: arábica e robusta. Ambos os cafés exibem qualidades gustativas e aromáticas que lhes são peculiares. O robusta, que no princípio era apenas um produto exclusivamente destinado à solubilização (devido ao seu menor preço unitário e seu maior rendimento industrial), passou, após a grande geada brasileira de 1974, a ser adicionado ao café lavado visando reproduzir os atributos de xícara do café brasileiro, que naquele momento se encontrava sob severa escassez de oferta. Surgia nesse instante a ciência das ligas de café que, desse momento em diante, se desenvolveu de modo formidável.
Com o desenvolvimento tecnológico (branqueamento), foram rompidas as barreiras para os limites de adição de robusta nas ligas (antes de até 20% a 30% no máximo) e já é relativamente comum se encontrar-se no mercado de café, especialmente no brasileiro, ligas em que o robusta aproxima-se dos 50%. Ou seja, o mercado sufragou o deslocamento da prevalência do arábica na mistura e isso trouxe uma consequência bastante gravosa para esse produto, qual seja, suas cotações tornaram-se aderentes às condições estruturais de oferta do robusta.
Uma maior adição de robusta nas ligas foi respaldada pelo crescimento sustentável da oferta do produto que adveio não apenas da expansão da área cultivada, especialmente no sul da Bahia e em Rondônia, mas, sobretudo, pela incidência de dois fatores: a) quase inexistência de ciclo bienal na lavoura do robusta e b) introdução de inovações tecnológicas de grande impacto produtivo. Nesse segundo item, o processo iniciou-se pelas variedades clonais (cerca de 20 anos atrás), a tecnologia de podas, o adensamento, ajustes no manejo da fertilização, a irrigação e, finalmente, o descascamento dos grãos cereja (numa clara orientação pela qualidade superior). Outras inovações em curso permitem asseverar que a lavoura do robusta já exibe trajetória tecnológica bastante divergente do arábica. Será cada vez mais comum encontrar talhões com carga acima das 100 sc/ha nas lavouras do norte do Espírito Santo e sul da Bahia e em até mesmo fora desses cinturões (Minas Gerais e São Paulo). Desprovido da capacidade de gerar inovações no médio prazo que garantam ao arábica níveis de produtividade competitivos, o impacto sobre os mecanismos de formação das cotações em parte derivados dos avanços tecnológicos do robusta estão sendo e continuarão a ser desastrosos para o mercado dos cafeicultores de arábica (4).
Exibindo, portanto, sistemas de produção que do ponto de vista tecnológico trilham trajetórias divergentes e encontrando o robusta uma crescente aceitação na composição das ligas de café torrado e moído, esse café deixou sua condição de produto coadjuvante do arábica para outra de principal concorrente, vinculando-se a bases tecno-produtivas mais sustentáveis, deslocando tendencialmente o arábica de sua condição de produto prevalecente no agronegócio café.
Arábica e robusta formam atualmente dois mundo separados. Quer pelos avanços tecnológicos registrados no segundo ou pelo refinamento dos mercados com a prática da segmentação e da diversificação de produto, em sentido mais amplo – descomoditização, não se pode mais analisar o agronegócio café como um todo homogêneo. Assim, retornando ao princípio dessa análise, os departamentos do Estado responsáveis pela elaboração de políticas públicas para o segmento não mais deveriam se estruturar num único fórum. A especialização dos gestores em arábica ou em robusta é uma consequência quase que natural das divergentes trajetórias técnico-comerciais que os dois cafés atualmente exibem. A revitalização de associações centradas no arábica; o movimento pela rotulação do café torrado e moído (5) e a consolidação do Centro Tecnológico do Café (CETCAF/ES), organizado em torno da pesquisa e difusão de tecnologias para o robusta, são sinais da organização dos lobbies exclusivos de cada classe.
Antes que a ruptura entre arábica e robusta constitua um exemplo da “guerra de todos contra todos”, o atual governo, ocupante momentâneo do poder de Estado, deveria iniciar os estudos de reforma do Conselho Deliberativo de Política Cafeeira (CDPC) (6), pois não se trata mais de construir políticas para o café, mas boas ações para o arábica e para o robusta, que mutuamente se reforcem e façam desse agronegócio um conjunto harmônico de atividades que encontrem condições equitativas de competitividade (7). Esse é a orientação para a construção de políticas modernas, afastando-se progressivamente dos caminhos que sempre terminam na tão almejada, porém nefasta, tutela governamental.

1 – O Livro de Jó nos capítulos 40 e 41 descreve ao Leviatã como um indomável monstro marinho.
2 – Em alguma medida essa expressão é derivada de outra co mesmo autor e ainda mais famosa: “o homem é o lobo do homem”.
3 – Que na maior parte dos casos não passa de mero embuste para enganar os incautos clientes.
4 - O assunto já foi tema de análise no artigo Café: o confronto entre dois mundos. Ver: www.cafepoint.com.br/relatóriosmensais
5 – No Estado de Paraná, por exemplo, a rotulação será obrigatória após a superação do último recurso interposto pelos industriais da torrefação.
6 – Os relatos que nos chegam sobre os enfrentamentos ocorridos no CDPC, desde há muito tempo se converteram na “guerra de todos contra todos”. A reforma desse fórum deveria ser uma das ações do governo dentro do atual esforço de revitalização do arábica.
7 – Algo similar ocorre com a lavoura sucroalcooleira, pois os assuntos do açúcar são tratados preferencialmente pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento enquanto os do álcool circulam preferencialmente pelo de Minas e Energia.

(*)Celso Luis Rodrigues Vegro é Eng. Agr., M.S. Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Pesquisador Científico do IEA
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