Mercado
Risco da agricultura e redesenho da política setorial brasileira
São Paulo, 1 de outubro de 2009    
Por José Sidnei Gonçalves (*)

Sucesso das políticas de crédito e preços tornou-as superadas

As discussões sobre as políticas públicas para a agricultura brasileira, dado o estrondoso sucesso das transformações operadas após a segunda metade dos anos 1960, quase sempre resvalam na insistência dos diversos interlocutores, a maioria deles respeitáveis, de propor alternativas que buscam tentar resgatar os dois principais instrumentos utilizados para a realização do que se convencionou denominar “modernização da agropecuária”, quais sejam preços remuneradores e crédito facilitado, para ser fiel à nomenclatura utilizada por Ruy Muller Paiva ainda nos anos 1950 para o que mais tarde seria conhecido como preços mínimos e crédito rural subsidiado.
O que essas postulações não levam em conta está no fato de que a concretização das políticas de preços mínimos e de crédito subsidiado deu-se de forma datada no tempo histórico. Para isso há que se visualizar essa mudança estrutural num horizonte maior que os limites da agropecuária uma vez que a modernização agropecuária não se deu no vazio, inserindo-se num processo mais amplo de industrialização da agricultura que por sua vez estava imbricado com a industrialização brasileira. De um lado o crédito subsidiado que impulsionou essa modernização representou na verdade um crédito ao consumidor que criou demanda para a expansão da agroindústria de bens de capital e insumos que se implantava a montante da agropecuária.
De outro havia que se aumentar a produtividade da terra como forma de viabilizar as agroindústrias processadoras e mesmo as estruturas das tradings companies que se estruturavam a jusante das propriedades rurais. Essa vinculação com o objeto de intensificação do uso do solo também se mostra consistente com outra resultante incontestável desse processo de transformação, que foi muito mais profundo que mera modernização agropecuária, qual seja a consolidação de intensa especialização regional, exigência inexorável da necessidade de se obter ganhos em escala que viabilizassem a expansão das agroindústrias.

Especialização produtiva e especificidades territoriais

Essa característica do novo padrão agrário enterrou de vez as apostas na diversificação agropecuária como uma alternativa para a redução de riscos da agropecuária. Essa postulação saudosista e incompatível com a complexidade da agricultura brasileira moderna cujo desígnio para ampliar a competitividade está exatamente em apostar no sentido oposto, qual seja aprofundar a especialização agropecuária, ainda que em muitos casos este processo esteja casado com a exploração de outra condição da agropecuária moderna, qual seja a complementaridade produtiva.
Cana com amendoim nas áreas de renovação, engorda de bovinos com resíduos agroindustriais, a integração lavoura-pecuária, dentre outras associações de atividades conformam não a negação, mas a reafirmação da especialização agropecuária como resultantes da formação de agriculturas territoriais. Não fazem o menor sentido as postulações de que a ampliação da diversificação agropecuária seja um processo sustentável nesta quadra histórica, nem há evidências de que isso viesse a ampliar poder de barganha dos produtores rurais ou mesmo garantir alguma autonomia.

Desenvolvimento capitalista e perda de autonomia do agropecuarista

Há que se convencer de forma definitiva que, na agricultura moderna, o raio de manobra do agropecuarista autônomo se mostra reduzido para não dizer quase nulo. Daí a necessidade de construção de instrumentos governamentais de gestão de riscos, de irradiação das boas práticas produtivas e de um código de boas práticas comerciais. Nessa nova economia da agricultura a assimetria não se resume ao poder de barganha entre agentes econômicos dentro de um mesmo fluxo produção-consumo, mas principalmente no domínio e acesso a informações.
Se o avanço da sociedade levou ao Código de Defesa do Consumidor para fazer valer direitos da massa dispersa do lado do consumo, na agricultura há que se pensar num Código de Defesa do Agropecuarista para que tenha respeitados seus direitos seja como consumidor frente aos oligopólios das agroindústrias de bens de capital e insumos, seja como fornecedor frente aos oligopsônios das agroindústrias processadoras e de alimentos e das empresas de agroserviços transacionais e financeiros. Numa palavra, essa assimetria exige a presença do Estado, regulando processos econômicos e não apenas na vertente da qualidade.
De outro ângulo, apostas no acirramento do conflito entre o capital agrário e o capital agroindustrial no seio da agricultura moderna representam uma opção sem sustentação na própria história da transformação setorial. O conflito entre usineiros e fornecedores de cana tornou letra morta o Estatuto da Lavoura Canavieira da mesma forma que os atuais conflitos entre citricultores e agroindustriais representam uma ocorrência de resultado anunciado, pois o capital industrial representa uma construção histórica mais avançada que a lógica do capital agrário. E não há espaço para rodar a história no sentido inverso do devir das mudanças econômicas que fazem seu movimento.
Da mesma maneira a crescente financeirização da riqueza traz para o centro da hegemonia o capital financeiro, a forma mais elevada e abstrata de capital que por isso mesmo tende a subordinar o capital produtivo, seja ele agroindustrial ou agrário. Não se trata aqui de tomar partido, mas simplesmente de entender que isso decorre do avanço do processo de acumulação capitalista. Na mesma linha, dentro das mudanças na estrutura de mercado e formação de preços não há como enfrentar o predomínio dos supermercados, que nada mais significa que o mecanismo de concretização daquilo que os manuais de economia já continham desde o final do século XIX, qual seja a ditadura do consumidor. Afinal o ato de compra ao forjar demanda se mostra imperativo -e quase absoluto- enquanto determinante do processo econômico.

Profissão de fé com dogmas do passado não leva à salvação

A reflexão sobre a política setorial deve escoimar essas profissões de fé que atrapalham a construção da modernidade das políticas públicas, sob pena da discussão por esbarrar nessas postulações pretéritas no tempo histórico, pouco contribuir para a construção de um novo ciclo de desenvolvimento da agricultura brasileira. As políticas setoriais devem ter em conta que as transformações operadas conformaram distintos mecanismos e padrões de coordenação vertical do fluxo produção-consumo da agricultura.
Isso porque há enorme diversidade de concepções estruturais, indo desde situações onde prevalece a integração vertical plena com domínio absoluto do capital industrial como no açúcar, álcool, papel e celulose, até realidades em que estão conformadas seqüências de produção como na soja e na carne bovina. Existem ainda processos em que se configura a integração contratual como na produção de carne avícola em contraposição à desconexão entre elos no fluxo produção-consumo de ovos.
Não há espaço aqui para aprofundar essa discussão dos mecanismos de coordenação vertical dos distintos fluxos de produção-consumo da agricultura, mas há que se reconhecer a sua diversidade conformando a necessidade de se seguir estratégias diferenciadas de políticas públicas. Essas se já devem incorporar os elementos da economia monetária de produção como a supremacia do capital industrial sobre o capital agrário e do capital financeiro sobre ambos, também devem levar em conta a territorialidade da especialização produtiva que forja especificidades regionais e as distinções entre os mecanismos de coordenação vertical que determinam distintas capacidades de orquestração de interesses nos diferentes fluxos produção-consumo.
Veja-se que a agricultura brasileira sequer havia resolvido sua questão agrária, referida enquanto enormes distorções estruturais decorrentes de que diferenças conformaram iniqüidades de renda e de acesso aos benefícios da modernidade no campo exigindo políticas compensatórias como a previdência rural, melhoria da condição de vida e da qualidade social das famílias na produção de subsistência com financiamento dirigido e outros mecanismos e porque não nas situações mais dramáticas da assistência às famílias com garantia de renda mínima. Isso ainda que tenha equacionado a questão agrícola tendo obtido a liderança mundial em termos de lavouras e criações tropicais.

Movimentos sociais dos “com” com mais força que os dos “sem”

Essa nova condição estrutural da agricultura traz um novo elemento da regulação estatal em nome de uma sociedade urbanizada, quais sejam as exigências ambientais. E os ditames de uma sociedade cada vez mais consciente em termos ecológicos trazem uma pressão adicional, agora não mais exercida pelos “barrados no baile” do processo de transformação da agricultura no seu ímpeto concentrador de terra e de renda. Os exageros de algumas posturas pseudo-ambientalistas de rodar a história para traz e/ou de tentar limitar o processo de acumulação com restrições legais ou impingindo ônus aos produtores rurais se perderão no tempo. Mas não se deve cometer o erro de menosprezar a magnitude da mudança em curso derivada das exigências ambientais crescentes.
Isso porque não se trata aqui de movimentos sociais consubstanciados nos movimentos dos “sem” que não formam a demanda agregada (os sem terra), mas nos movimentos dos “com” que determinam o tamanho e o perfil da demanda (os com renda). Há que se ter nítido que esses movimentos dos “com” forjam transformações que movem a história de maneira mais decisiva que os movimentos dos “sem”. Esses integrantes dos movimentos dos “com” também integram a base social da exigência do alimento seguro. Por certo eles ainda não encontraram de forma coerente e consistente o ponto de convergência, mas estão cada vez mais próximos disso. E o agropecuarista conhece a máxima de que se o “boi soubesse a força que tem não seria preso pelo laço”.

Estado e defesa dos agentes dispersos: consumidores e produtores

Tudo isso torna imprescindível a existência do Estado, ainda no sentido mais preciso da máxima de Hobbes da exigência inexorável do Leviatã para impedir a guerra de todos contra todos. Mas a exigência de políticas públicas para agricultura não significa a manutenção da mesma toada do velho modelo de desenvolvimentismo que esgotou exatamente pelo seu sucesso. A agricultura moderna consiste numa filha pródiga e exuberante da intervenção estatal no Brasil.
Exatamente por isso, por ter sido criada “no leite” enriquecida pela sustentação pública do padrão de financiamento forjado na metade dos anos 1960 e, porque não, pela competência das ciências agrárias nacionais que forjou instituições e universidades de padrão reconhecido no plano internacional, é que essa agricultura ultrapassou a força de seu criador. Desse modo não há como o Governo – no sentido de todas as instâncias federativas – com as ripas das costelas da magreza da insuficiência fiscal à mostra, continuar nutrindo “bezerro erado” que deva ser desmamado. Isso porque não existem mais as condições do padrão de financiamento que deu sustentação à modernização da agropecuária dos anos 1970.
O Estado necessário se mostra de outra concepção, não mais no sentido do atendimento da demanda de recursos para a produção, mas atuando seletivamente na garantia dos elementos indutores de mudanças nessa produção. Ao invés do Estado provedor de carências deve surgir o Estado mobilizador das forças construtoras das eficiências e regulador das competências, todas já presentes na economia e na sociedade. Em síntese o Estado que defenda o consumidor com a garantia de alimento seguro exigindo boas práticas de produção, mas que também defenda o agropecuarista contra riscos agronômicos e de mercado forjando mecanismos de seguro rural e seguro de renda. Essas dimensões da ação estatal estão sustentadas em análise de risco, seja na defesa da agricultura na concretização do alimento seguro em especial o risco sanitário, seja no gerenciamento dos riscos agronômicos e de mercado.

Alimento seguro resultante da gestão de riscos, em especial sanitários

A questão do alimento seguro da fazenda a mesa ganha contornos econômicos cada vez mais relevantes passando a integrar a pauta de negociações multilaterais e bilaterais do comércio internacional, além da agenda de políticas públicas das principais nações capitalistas desenvolvidas. Numa realidade de ausência de fome e outras formas derivadas da escassez de alimentos e numa condição de renda média, sofistica-se o consumo por diferenciação passando os consumidores a exigirem qualidade diferenciada para o alimento e políticas públicas de controle visando acesso ao alimento seguro.
Isso provoca importante alteração no perfil da demanda com impactos decisivos sobre a agricultura pois : i) reforça a visão sistêmica sobre a cadeia de agentes da fazenda ao consumidor; ii) usa a ciência para a elaboração das normas e medidas de controle (análise de risco); iii) estimula o auto controle e a gestão pela qualidade; iv) torna clara a responsabilidade do fornecedor pela segurança e especificações dos produtos e serviços; v) emprega a rastreabilidade para facilitar a troca de produtos defeituosos e resolver rapidamente as situações de emergência; vi) garante o direito à informação sobre produtos, processos e controles.
A competitividade da agricultura passa a ter condicionante até então não presente nas transações que deixam de forma progressiva a realidade de meros ajustes de quantidade e preços para inserir nesse contexto a diferenciação pela qualidade. E ainda nisso, o alimento seguro torna-se de forma cada vez mais contundente um axioma que consubstancia um requisito prévio de acesso a mercados. A presença internacional determina a adoção de visão integrada e cooperativa com ações efetivas para garantir aos consumidores produtos e serviços dentro dos mais elevados padrões de qualidade e segurança, tanto no plano externo como interno.
Muito se tem dito que as estruturas brasileiras da sanidade animal e vegetal não dão conta das exigências atuais dos mercados. Mas não se trata da leitura simplista de maior ou menor volume de recursos aplicados. O âmago da questão se mostra mais profundo, qual seja a necessidade imperiosa da mudança de paradigma superando a lógica da defesa agropecuária tal como ela foi e está concebida.
Historicamente a sanidade tanto vegetal como animal estão associadas à mesma prática de aumento da produtividade – e conseqüentemente da oferta agropecuária. Para tal haveria que ser controlados eventos sanitários que tinham o condão de reduzir a produção no aspecto quantitativo. Agora a dimensão é outra, inversa porque deriva da demanda, qual seja o consumidor quer alimento seguro e, porque já tem alimentos abundantes em termos de quantidade, quer qualidade.
E por tal razão o alimento seguro passa da esfera da produção para a esfera da cidadania, da sanidade da produção para a saúde pública. E as decisões de políticas públicas para defesa da agricultura devem transpor barreiras incorporando análises de risco, de risco à saúde, para serem desenhadas e implantadas. Noutras palavras, a identificação de problemas associando a cada um deles os riscos potenciais e reais representa uma condição da moderna defesa da agricultura.

Seguro na agropecuária: muito mais que garantia da produção

A questão do aprimoramento dos mecanismos de seguro rural deve estar embutida na discussão da nova política para a agricultura brasileira. Isso porque em linhas gerais o Governo Federal tem gasto algo em torno de R$ 5 bilhões por ano para impedir que seja ainda mais explosiva a divida rural que atinge hoje algo em torno de R$ 160 bilhões, dos quais apenas em torno da metade com agências oficiais de financiamento. E a dívida não tem tido solução correspondendo a um verdadeiro "sub-prime" da agricultura que, se explodir, vai arrastar muitas empresas e muitas regiões. Há que se buscar um mecanismo de sustentabilidade econômica para o campo.
Uma primeira condição, a do gerenciamento de riscos produtivos (clima, pragas, doenças) seria resolvida com o seguro rural clássico. A primeira lei de seguro rural do Brasil foi realizada no âmbito do Governo do Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 11.244, de 21 de outubro de 2002, que dispõe sobre a concessão de subvenção do prêmio de seguro rural. Mais tarde o Goverrno Federal com base nessa experiência paulista criou uma lei nacional. Nesse mecanismo o Governo promove subvenção econômica no caso equivalente à metade do valor do prêmio (custo) do seguro rural. Nesse caso pela aplicação das subvenções econômicas -federal e estadual- o agropecuarista paulista recebe subvenção equivalente a 75% do valor do prêmio.
Esse é um dos dois principais instrumentos da política que garante estabilidade de renda na agricultura dos EUA (as subvenções norte-americanas em alguns casos chega a 90% do valor do prêmio), mas que no Brasil ainda está engatinhando. Não se têm ainda um mecanismo consistente para modalidade de seguro do patrimônio produtivo (pomares, rebanhos, máquinas) que também deveria ter mecanismo de subvenção econômica para garantir a estabilidade de patrimônio produtivo que, conquanto tenha propriedade privada, consiste num patrimônio da nação brasileira. Veja que essa modalidade seria relevante para a defesa da agricultura no enfrentamento da erradicação de focos como os de aftosa dos bovideos, greening dos citros, etc. Nesse caso para proteger os demais agropecuaristas, em especial os vizinhos, é preciso erradicar os pomares inteiros e abater rebanhos inteiros na detecção dos focos. Quanto mais demorar pior.
Há também a escalada da violência rural com roubos de tratores e colheitadeiras (que não tem emplacamento, nem documento renovável comprobatório de propriedade com registro de chassis), de animais e equipamentos. E não há política pública que ao menos preserve o patrimônio produtivo, levando o agropecuarista a arriscar-se no caso de ocorrência desses atos de violência, pois caso contrário as perdas patrimoniais podem atingir valores expressivos e seriam irreversíveis. Se existisse um mecanismo de seguro patrimonial as condições operacionais de realizar essa necessidade de toda sociedade de garantir a defesa do patrimônio produtivo da agricultura, seriam muito mais consistentes.

Seguro de perfil exige zoneamento econômico e não agronômico

Outra questão do seguro rural, consiste em fugir da ultrapassada concepção de uso do zoneamento agronômico para estabelecer as políticas de seguro agronômico. O zoneamento se mostra um instrumento relevante para decisão de produção do agropecuarista, devendo ser utilizado para a política de seguro rural apenas no limite de sua utilidade, qual seja definir regiões aptas ao plantio. No caso da agricultura dos EUA o zoneamento tem papel mais preponderante porque lá não existe o "laissez faire" da produção. Lá o agropecuarista não planta ou cria o que quer, mas seguindo o planejamento governamental. No cinturão do milho (corn belt) as políticas sustentam o plantio do milho e não de outras lavouras.
No Brasil não é assim dado que prevalece a ditadura da livre iniciativa. Por certo tamanha liberdade econômica deveria estar respaldada em total autonomia econômica em relação às políticas governamentais, mas não é assim que ocorre, pois no plano jurídico prevalece a livre iniciativa de cunho privado-individual e no plano econômico, em especial nas crises, busca-se a socialização das perdas onde o indivíduo busca reconhecimento enquanto ser social protegendo-se em nome do interesse coletivo.
O caminho para a modernidade do seguro rural no Brasil consiste em avançar mais que a aprovação do propalado "fundo contra catástrofes" que proposto pelo Governo Federal, anda a passos lentos no Congresso Nacional. A ele deveria ser associado o mecanismo de seguro de perfil, já praticado no caso urbano dos automóveis. Todas as propriedades rurais brasileiras estão sendo objeto de redefinição de limites com base em técnicas de geoprocessamento. Assim, pode-se ter até que enfim a sofisticada estrutura de um cadastro nacional de propriedades rurais georeferenciadas.
Nos EUA isso foi feito no século XIX. Veja-se que os limites dos estados norte-americanos em muitos casos são linhas retas. Isso porque desde o início a ocupação de terras nos EUA obedeceu aos preceitos das coordenadas geográficas, com base em elementos de topografia. Desse modo cada propriedade rural foi delimitada antes mesmo de sua ocupação efetiva. Desse modo os EUA criaram um consistente Cadastro Nacional de Terras que deu sustentação a todas as políticas para a sua agricultura. No Brasil ainda se têm o velho sistema cartorial de registro, com uma enorme inconsistência de limites que a atual obrigatoriedade do geoprocessamento tenderá a resolver.
Cumprido esse desígnio com o atraso de mais de um século em relação à experiência norte-americana, pode-se ter um Cadastro Nacional de Terras no Brasil. E com base nele pode-se ter a adoção de dois mecanismos relevantes: a adoção do seguro de perfil na agropecuária com prêmio fixado em função do histórico de sinistros para cada atividade em cada propriedade e a criação de títulos fundiários securitizáveis por serem negociáveis no mercado secundário (em bolsas) como lastro para o financiamento do investimento.
No seguro de perfil basta utilizar a indicação geográfica como referencial para cada operação de contratação de apólice de seguro rural e, lançado num cadastro, em poucos anos ter-se o histórico de desempenho de cada proprietário e propriedade rural naquela atividade. E no gradiente de casos com menor histórico de sinistros os valores dos prêmios pagos no seguro rural seriam cadentes, premiando o produtor que realizasse seus empreendimentos com base em boas práticas produtivas.
Isso eliminaria também notórias deficiências microregionais do propalado zoneamento agrícola que, tratando dados de clima e solo em grande escala não tem como levar em conta especificidades essenciais na agricultura, a qual consiste numa atividade específica quanto ao local. Para se ter uma idéia, no zoneamento do café, os municípios paulistas de Tejupá e Piraju estão fora da zona apta à cafeicultura conquanto estejam entre os que produzem, da ótica da qualidade, dos melhores cafés do Brasil. E há muitos outros casos que apenas a substituição do zoneamento agronômico pelo zoneamento econômico poderia corrigir.

Títulos fundiários negociáveis no mercado secundário

Quanto ao titulo fundiário para negociação no mercado secundário, isso também é prática corrente nos EUA e esses papéis fazem parte do portifólio das centenas de bancos "agricolas" norte-americanos. Esses títulos são importantes para lastrear o mercado de capitais norte-americano bem como permitem uma política de investimento na agricultura que associe diretamente o valor patrimonial da propriedade com o investimento realizado, uma vez que a propriedade passa a valer mais dados os investimentos no seu aperfeiçoamento produtivo com o que ao mesmo tempo em que lastreia a garantia do financiamento do investimento com um título líquido e certo, endossável e com execução extra-judicial, promove a própria valorização desses papéis com as melhorias produtivas operadas. Está certo, se custeio tem a ver com a produção, investimento tem a ver com a capacidade da produção, ou seja, com a propriedade.
No Brasil há que serem superados dois entraves, o primeiro relacionado à garantia jurídica plena porque inquestionável do direito de propriedade. Isso é condição para a necessária segurança dos títulos propostos. De outro há que serem superados outro atraso estrutural decorrente do mecanismo "cartorial" de registro do direito de propriedade, incompatível com o conceito de ativo pleno (requisito do bem tangível que latreia títulos) na medida em que há inclusive restrições constitucionais à execução das garantias afetas à propriedade. Isso está no âmago do elevado custo de recuperação do crédito que produz "spreads" elevados que encarecendo o custo do dinheiro acaba penalizando a própria agricultura além da sociedade como um todo.

Seguro de renda e equacionamento da dívida rural

Outra modalidade de seguro visa o gerenciamento dos riscos de mercado. Um desses mecanismos consiste na da estruturação do contrato de opção com subvenção econômica de recursos públicos, como o que seria operado por parceria entre o Governo do Estado de São Paulo e o Banco do Brasil. Nesse caso, sem a exigência de gestão diária - que tem como requisito tempo e conhecimento dos mercados - os contratos de opção: a) asseguram ao seu titular o “direito” de comprar ou vender um produto a determinado preço; b) o agropecuarista comprador de uma opção possui um direito, mas nenhuma obrigação, assim se os preços foram maiores ele pode se beneficiar da alta, além de estar protegido da baixa; c) o agropecuarista pode escolher o nível de proteção que quer comprar, podendo se contentar com o nível próximo de seus custos ou embutir a margem mínima de remuneração pelo seu esforço. Assim, o contrato de opção representa um seguro de preço futuro do produto escolhido. Essa experiência de subvenção governamental ainda não foi realizada no Brasil. O Governo do Estado de São Paulo, ainda neste segundo semestre de 2009, pretende realizar uma experiência piloto introduzindo esse instrumento para conhecimento e uso do agropecuarista brasileiro.
Importante também referenciar a experiência norte-americana em que todas as operações de exportação da agricultura geram a obrigatoriedade do hedge como mecanismo de gerenciamento de risco de mercado. Sem um instrumento de similar concepção não há como desativar o pavio que incandescente leva à iminência de explosão da bomba da dívida rural. As renegociações e reestruturações conduzidas desde nos últimos 15 anos apenas tem tido o condão de esticar esse pavio sequer debelando a chama ameaçadora que o consome num rotineiro aproximar do artefato explosivo de efeitos dramáticos sobre a estrutura produtiva da agricultura brasileira, que se mostra competitiva mas sob o fogo cruzado de perigos constantes, sendo crucial o da dívida rural acumulada para a qual, em nome da sociedade, o Governo Federal deve produzir solução duradoura.


(*) José Sidnei Gonçalves é engenheiro agrônomo, doutor em Ciências Econômicas e pesquisador do Instituto de Economia Agrícola, IEA.
sydy@iea.sp.gov.br
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