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Lavoura infame e augusta (1) | |||
São Paulo, 24 de agosto de 2009 | |||
Celso Vegro (*) “São milhões os que se esforçam para manter a espécie. Mas é através de poucos que a humanidade se propaga.” Frederich Schiller Juntar os fenômenos que trazem má fama ao café com aquilo que o torna excelso é o desafio a que por ora a mim proponho. Antes, porém, um alerta a amiga leitora menos dedicada aos estudos filosóficos (2): não se apresse por conclusões, pois a realidade a qual julgo tanto infame como augusta não formam as duas faces de uma mesma moeda. Engendram, aliás, duas realidades que se combinam, determinam e mutuamente prevalecem para originar uma síntese de unidades contraditórias que nesse particular, por dever de ofício deste cronista, é o agronegócio café. Abjeta é a postura das atuais lideranças dos cafeicultores (nisso juntam-se tanto os nobres parlamentares como os líderes das entidades de classe) em seu empenho por recompor o já sepulto passado. A descrença de que desse tipo de ação possa surgir uma verdadeira mudança nas mentalidades e nas formas de conduzir as explorações é, senão zero, nenhuma! A cafeicultura carece da aplicação do mais puro pensamento shumpeteriano: ser abatida por uma tsunami de destruição criadora visando desmantelar as colunas do atraso, concedendo luz para o refulgir das formidáveis inovações e das práticas gerenciais modernas que somente a criatividade humana é capaz de imaginar e por a funcionar. A sanha em arrancar vantagens dos cofres da viúva alcança o patamar da vilania. Em meio ao mais violento colapso financeiro global que, a cada dia, dilapida mais um bocadinho o tesouro público brasileiro, as lideranças dos cafeicultores não se dão por satisfeitos com a substancial majoração dos preços mínimos. Afinal, que mal poderia haver em se querer mais? Pois então que se prepare nova marcha. Prosaicos são esses senhores ao não se aperceberem que as políticas públicas são desenhadas para oferecer garantias à continuidade das explorações por meio da criação de justas referências para as cotações do mercado e não para nutrir o guloso espírito rentista que, lamentavelmente, ainda, habita a mente de parte dos nossos cafeicultores e daqueles que os dirigem. Esqueça o mercado, o que verdadeiramente norteia a ação classista é a busca desenfreada de vantagens valendo-se de sua provisória capacidade em pressionar uma combalida estrutura de governo. Perdidamente felizes seriamos todos se a atitude torpe estivesse circunscrita apenas ao ambiente da produção. Mas, não! Na torrefação a conduta viciosa é igualmente patológica. A estes olhos dardejantes não escapou a tentativa do segmento em plantar a semente do mal. Senão, vejamos as manchetes nos mais prestigiosos jornais paulistas: “É elevada a fraude em café torrado e moído” Ingênuos jornalistas recorrem então aos representantes da torrefação e esses sem nenhuma desfaçatez afirmam: é preciso criar as normas de regulamentação para o produto! Sabemos nós que tal regulamento a mais de um ano encontra-se praticamente pronto e somente não foi ainda publicado no Diário Oficial em decorrência desta voz que se indignou com a tentativa de sufragar a adição de água ao produto. Rentismo, ganho fácil, lambujem temperadas por sinecurismo (3) formam as pretensões subjacentes da gente que conduz esse segmento. Frente a esse escândalo as lideranças dos cafeicultores fingem não haver qualquer problema, numa espécie de aliança sovina que lhes tapam os olhos e lhes costuram os lábios, pois certo estão de que sem o apoio dos torrefadores na obtenção de mais vantagens públicas, seu espúrio pleito definhará. Quanto avançaria a gestão nas torrefadoras caso se libertasse dos leilões públicos em favor da aquisição de títulos financeiros com capacidade de protegê-los das tão volúveis cotações da matéria prima. Amiga leitora quer agora ouvir, ou melhor, ler, um segredo – conto-vos: os torrefadores fogem da bolsa como o diabo da cruz pela simples razão do patamar de qualidade do produto estipulado pelos contratos. Bebida dura tipo 6 é um padrão que está tão acima do perfil de qualidade empregado pela porção majoritária das indústrias que as faz ignorarem os tais contratos (4). Só de imaginar o que a malta toda anda a beber é de causar comichões. Empurrar marzanha (5) goela abaixo para quem acredita que está a apreciar café é a principal diretriz dos homens da torrefação. Que dizer então da desonra que é pautar todas as transações nacionais e internacionais de café arábica brasileiro a reboque do Contrato C. Somos a maior nação produtora e exportadora de café. Ademais, possuímos o segundo maior mercado mundial de consumo da bebida e na BM&F-Bovespa já se negocia o equivalente a duas e meia safras brasileiras durante o ano fiscal, o que demonstra a liquidez e o vigor que esse mercado concentra. Todavia, os preços são formados acompanhando os movimentos das cotações em Nova Iorque para o Contrato C. E o C não é de Café nem de Cappuccino, mas de COLÔMBIA!!! Repito amiga leitora o C é de Colômbia. Note bem que nossos vizinhos colombianos não têm nem sequer os tais olhos azuis causadores de tanto padecimento nesse mundo (isso segundo o grotesco diagnóstico do mandatário dessa sofrida nação). E diante disso os negócios com café não fazem senão legitimar a lírica estrofe do hino nacional em que se louva nos encontrarmos deitados em berço esplêndido. A partir de agora, ao cantar esse verso, a todos se lembrem de enfunar o peito, afinal, aqui temos uma lavoura infame (6). Completamente desacreditado se encontra o corpo burocrático da Organização Internacional do Café, que já há dois anos conta, inclusive, com nativo de pindorama em seu alto escalão. Ao entusiasticamente afirmarem que o consumo manterá a trajetória de crescimento de 2,5% nesse ano de vertiginosa queda da riqueza mundial faz crer que a maior parte deles fugiu da escola. As monumentais ondas de desemprego que se abatem sobre os países centrais, periféricos e emergentes cria um processo de corrosão deflacionária da demanda interna que por mais inelástica que a bebida se comporte, não será capaz de sustentar qualquer variação positiva. Aliás, foi o que aconteceu ao Japão ao longo de sua década perdida (7). Manter-se nos mesmos patamares de consumo observados em 2008 já será uma grande conquista para esse ano em que para todos os lados os prejuízos só se avolumam. Infamíssima foi à manobra que conduziu a segunda extinção do núcleo de referência em sócio-economia Consórcio Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento do Café. Era um grupo vibrante que pela primeira vez em décadas contava com financiamento público para suas pesquisas originadas de projetos relatados e aprovados por seus capacitados pares, os produtos foram devidamente entregues desvelando de pronto diversas contribuições do mais alto quilate (8). Porém, conceder oportunidade para o sábio e ponderado trabalho sócio-econômico não faziam parte das virtudes que os conselheiros do café ambicionavam para esse negócio. Bazucas miradas, gatilho acionado, núcleo explodido. A seguir surge a nova orientação: redirecionamento das pesquisas para os correligionários escritórios de consultoria que disso se aproveitaram para se acarrapatar definitivamente aos cofres do FUNCAFÉ. Pelo tempo em que a sucção vem ocorrendo, os carrapatos de gabinete devem ter além dos intestinos túrgidos; burras deitando dinheiro para o lado. Reconheço, amiga leitora, que trazer a tona toda essas coisas odiosas e detestáveis é verdadeiramente um enfado. Parto então para descortinar aquilo que de augusto encontramos em nossa lavoura. Sim, possuímos coisas sublimes a relatar. É cada vez maior o conjunto de cafeicultores interessados em buscar certificações sócio-ambientais para suas explorações. Desde os mais simples como o 4C’s (Código Comum da Comunidade Cafeeira - apoiado pelas grandes multinacionais importadoras de café), até o mais complexo como é o caso do Rainforest Alliance (entre nós representados pelo IMAFLORA), o alcance desses certificados eleva não apenas a reputação de inúmeros produtores e de seu produto, mas promove uma reinvenção na forma de produzir e administrar os estabelecimentos rurais com nítidos benefícios sócio-ambientais para toda a sociedade. Ademais, a acreditação conferida pelas certificadoras mobiliza crescente número de compradores em oferecer prêmios ao produto certificado. Em algumas situações, a participação dos produtores nesse mercado representa a captura de margens adicionais significativas e que legitimam todo o empenho dedicado ao assunto. Ter por meta a mais elevada qualidade tem sido o esforço de grupos como a Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), das rodadas anuais promovidas pela illycaffè na sua insanável busca pelos grãos para expresso verdadeiramente únicos e todos os esforços das Câmaras Setoriais dos Estados em promover a melhoria contínua do produto em seus respectivos territórios por meio de palestras, eventos, torneios e premiações, edições com os melhores grãos da última safra, etc.. A cada ano que se passa o empenho dessas diferentes organizações, a bem dos apreciadores de café, trazem mais respeitabilidade a bebida de origem brasileira. A inovação tecnológica representada pela introdução do preparo tipo cereja descascado seja, talvez, a mais significativa contribuição da engenhosidade brasileira para o panorama cafeeiro mundial da atualidade. Os cafés processados sob essa tecnologia reúnem em um único produto os quesitos que melhor destacam os naturais e lavados. Corpo, moderada acidez e doçura do natural combinado com aroma e baixo amargor do lavado, ou seja, o produto ideal para a composição de qualquer tipo de blend que a indústria almeje. Portanto, foram mãos brasileiras as responsáveis por acrescentar mais qualidade na xícara que o mundo aprecia. O renascimento do cultivo do Bourbon Amarelo nos enche de júbilo. Geneticamente melhorado, manejado sob as mais avançadas técnicas agronômicas e alcançando produtividades de média a alta, essa variedade traz para a xícara o que há de mais respeitável em termos de bebida. Verdadeiro ícone da qualidade em qualquer parte do mundo, o Bourbon Amarelo agrega mais fama e respeito ao produto brasileiro. Com o êxito do esforço 100% nacional em decodificar o genoma do cafeeiro, o mapa da vida, permite aos cientistas avançarem para outros campos de inovação que tem potencial em modificar aspectos cruciais da forma com que a lavoura é conduzida. Diversos tipos de resistência (a fatores bióticos e abióticos), modificações na composição da bebida (teor de cafeína, amargor e doçura) e homogeneidade da maturação dos frutos, são exemplos que podem ser listados do que o porvir das inovações trará para a cafeicultura. Atenção, o momento atual é de contagem regressiva. A tentativa em edificar uma visão de conjunto é sempre provisória, pois o real é bastante complexo em diversidade de situações do que as ferramentas de análise empregadas para dele se extrair alguma inteligência. A todo o momento algo nos escapa e a totalidade que se acredita ter construído é sempre parcial e fluída. Ainda que reconhecendo a limitação desse meu método, descrer de sua capacidade em desvelar a estrutura mais significativa da realidade consiste numa tremenda estultice. Agora caminho para o fechamento dessa análise sem ainda comentar a evolução das cotações. Quer saber, esse capítulo é melhor deixar para amanhã. (1) Emprego a idéia de lavoura em sentido amplo, ou seja, de agronegócio. Agradeço aos comentários e sugestões exaradas pelo prof. Félix Schouchana da FGV/SP. (2) Uma imagem pode ajudar nesse entendimento. Por exemplo, não há como se definir o que é uma dívida prescindindo-se de seu fato gerador que é o empréstimo. (3) Em análises anteriores deste cronista foram perfeitamente calculados o montante do dinheiro embolsado. A bagatela soma R$ 150 milhões ao ano! Ou, se preferir, algo como 700 mil sacas de café candidamente substituídas por água. Por mais novelos que se faça às suas tripas suplico à minha amiga leitora para não se indignar demais, pois ainda muito tem por ler e eu por escrever. (4) Como ponderadamente me alertou o prof. Félix, também creio eu que o simples rebaixamento do padrão de qualidade estipulado pelos contratos não seria por si só capaz de atrair os torrefadores ao mercado de bolsa. O que precisa vir abaixo é a postura de esperar que o Estado, pai de todos, os socorra com os rotineiros leilões nos momentos que as cotações passam a corroer a rentabilidade da atividade. Com o fim dos estoques públicos ou se aumenta a cultura do hedge ou se prepara a torrefadora para venda para outra maior e melhor capacitada em se proteger de riscos. (5) Aqueles que por curiosidade ainda não conhecem a origem da palavra marzanha, indico que procurem ler outro artigo por mim nesse sítio publicado: “Café uma catadupa de zurrapa”. (6) A proposta desta análise é rivalizar o infame frente ao sublime e não pontuar na seara das proposições. Porém, para se evitar incompreensões penso nesse momento numa estratégia do tipo criação de Contrato B em Chicago em parceria com a BM&F-Bovespa, por exemplo. (7) Detalhes sobre o consumo de café no Japão na década de 90 podem ser apreciados em outro artigo de minha lavra: “Goles de Pessimismo Idiossincrático”. (8) O grupo paulista, por exemplo, produziu verdadeiros ícones como foi o caso do livro: “O prazer e a excelência de uma xícara de café expresso”. Por sua vez o grupo paranaense criou um sistema de alerta para a ocorrência de geadas o qual, quero crer, que nos dispensa tecer maiores comentários sobre a sua importância. (*)Celso Luis Rodrigues Vegro Eng.Agr., Ms., Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola, IEA, órgão vinculado a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, Apta, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, SAA. |
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