Mercado
Formação das propriedades rurais e as áreas de preservação permanente
São Paulo, 20 de agosto de 2009    

Por José Sidnei Gonçalves (*)

A discussão urbana de assuntos ambientais nem sempre leva em conta os argumentos das pessoas envolvidas, nomeadamente aquelas mais diretamente envolvidas que são os agropecuaristas. Exatamente esses que nos debates acalorados das questões ambientais são taxados de predadores do meio ambiente. E, esses personagens que em última instância são os construtores da economia continental brasileira nem sempre são ouvidos nas suas razões e nas suas preocupações.
Dar voz a esses importantes personagens, que em última instância serão os primeiros e mais afetados por decisões de políticas ambientais, se mostra crucial para que as medidas sejam sábias e que não seja cometido por mero preconceito e/ou ignorância o desrespeito contra aqueles que durante toda uma vida só fizeram trabalhar e que na imensa maioria dos casos são gente de bem com uma honestidade inimaginável.
Viajando com um pecuarista entre uma propriedade e outra no Triangulo Mineiro indaguei qual o sentido de que em vários espaços das suas fazendas havia mata natural na parcela mais elevada e plana e nas baixadas havia quase que sido suprimida a mata ciliar. A resposta pronta e inteligente veio de pronto, qual seja, que naquelas paragens além do pasto a rês precisa de água e assim todas as fazendas foram ocupadas primeiro nas várzeas depois foram sendo ampliadas as pastagens no sentido das “partes mais altas”.
Nas lavouras os brejos são mais promissores que os descampados e, em função disso, também para esse tipo de atividade priorizou-se a utilização das faixas mais próximas de rios e córregos. Aí está o fato de que na maioria das fazendas foram suprimidas as matas ciliares, ficando apenas as grotas onde a realização de plantio se mostra difícil. Em linhas gerais o argumento apresentado revela que na abertura das fazendas, sem irrigação ou outra capacidade de bombear água, ocorreu primeiro com a ocupação das várzeas e baixadas, levando de roldão as matas ciliares e com isso parcela importante das áreas de preservação permanente.
Por certo os pastos foram sendo ampliados morro acima com a progressiva abertura de invernadas e consequentemente aumento do rebanho, mas as lavouras, dada a fraca fertilidade dos solos, somente se tornaram possíveis com as máquinas e com a química de fertilizantes e corretivos. Poucas décadas atrás dizia o pecuarista, essas terras tinham pouco valor econômico, sendo exatamente a intensa transformação produtiva com insumos e máquinas modernas que fizeram a diferença não apenas na produtividade e até mesmo na possibilidade de produção, mas principalmente conferiu maior valor patrimonial à propriedade rural daquelas paragens.
A pecuária está entre as atividades econômicas com maior ganho de produtividade nas últimas décadas. A multiplicação dos rebanhos com animais da raça nelore –principal dentre as raças zebuínas- realizada pela irradiação das pastagens de braquiária produziu uma pecuária de corte com elevado padrão de produção de carne bovina por unidade de área. E essa revolução se mostra recente, com a grande amplitude datada da fase posterior aos anos 1970, permitindo que o boi a pasto ganhasse amplos espaços de terras mais fracas onde a atividade era incipiente e rudimentar.
Interessante pontuar que esse binômio formou a pecuária de corte mais competitiva do mundo ofertando carne barata em quantidade tem muito pouco a dever a inovações produzidas em laboratórios públicos de pesquisa. As histórias das inovações são contadas em versos e prosas por terem sido produzidas por pioneiros que importaram animais da Índia, para depois darem sustentação a uma genética de elevado padrão em que as experiências privadas são relevantes ainda que atualmente existam esforços públicos nesse sentido.
Talvez aí esteja outro elemento histórico relevante para entender o preconceito que persegue a pecuária de corte, o qual impede até mesmo a compreensão do seu papel histórico desempenhado na formação da agricultura brasileira. Trata-se de um segmento econômico de ponta, que está entre os principais componentes da pauta das exportações brasileiras, cuja qualidade tem avançado em ritmo crescente com abate de animais mais precoces, mas cujas inovações mais determinantes – o nelore e a braquiária- não estão associadas à pesquisa pública.
Existe mesmo instituição de pesquisa zootécnica que por décadas ignorou a braquiária como opção para elevar a produtividade das pastagens e outras de renome internacional que criaram raças de animais que nunca tiveram expressão no rebanho nacional. Até nisso a pecuária brasileira deve ser valorizada no seu sentido inovador dado que realizou uma transformação tecnológica de dimensões expressivas em termos de ganhos de eficiência e produtividade arcando com os próprios custos e realizando praticamente por si mesma a busca da construção da modernidade.
De solavanco em solavanco da camioneta que corta as estradas rurais num “areião bravo” pode-se aprender muito com a experiência do pecuarista que se fez personagem anônimo da construção da moderna pecuária brasileira. E nada no seu sentimento revela a existência de um empreendedor despreocupado com a questão ambiental. Ao contrario, se mostra aberto a conversar sobre a necessidade de recomposição das matas ciliares e da manutenção das áreas de preservação permanente, inclusive como um recurso para enfrentar as secas.
A modernização da pecuária mais que braquiária e nelore com certeza implica na produção de silagens e outras formas de alimentação de animais na seca, evitando que parcela expressiva do peso ganho nas águas de um ano se perca no longo período de “pouco pasto” até a nova temporada de chuva. Há também a realização de terminação e/ou confinamento com uso intenso de resíduos agroindustriais na alimentação produzindo carne exatamente nesse período de “entressafra”, além de que o leite exige que as vacas sejam alimentadas com suplemento proveniente de silagens e/ou fenos nesse tempo de pouco pasto.
Mas também a estrutura dos pastos mudou. Na pecuária, a técnica moderna indica que há que serem construídos bebedouros e “cochos” nas partes mais altas das pastagens para que os animais não mais tenham que se deslocar até as baixadas e/ou barreiros para beber água. Para isso há que se construir uma infra-estrutura de represamento, bombeamento, canalização, armazenamento e distribuição de água, além do acesso a esses pontos de alimentação (suprimentos minerais em especial de sal) e de água.
Para isso há que serem realizados os investimentos que devam ser estimulados pelos seus efeitos ambientais relevantes, pois eliminam as voçorocas que se formam nos pontos de acesso aos poços de água das baixadas, constituídos pelos carreadores formados pela sucessiva passagem de animais nas idas e vindas para beber água. Isso além de ampliar a magnitude das perdas ambientais levando ao assoreamento dos córregos e rios e destruição das margens, implica em perda de energia e conseqüente perda de peso, além de outros perigos como o atolamento de animais.
Para o pecuarista estas colocações são tão óbvias que se perdem no meio de sua experiência acumulada numa história de vida dedicada à atividade. Entretanto, o que pode parecer óbvio para o amigo pecuarista é ignorado por imensa parcela dos formadores da opinião pública urbana. Desconhecem essa vida de produtor, cheia de crises em que frigoríficos e laticínios já lhe fizeram ter imensas dor de cabeça por terem levado o boi e o leite e nem sempre honrado os pagamentos. Agora nesta crise essa história se repete como farsa que não ganha contornos de tragédia econômica porque já calejado pela labuta o pecuarista sempre se cerca de várias precauções.
Por isso, muitas vezes pode ser até taxado de conservador, mas na verdade consiste num precavido contra os solavancos da vida, que sabe que pode quebrar a espinha dorsal da sua permanência na atividade. E voltando à necessidade de reverter o quadro atual das áreas de preservação permanente, seria interessante que as políticas públicas criassem mecanismos de estímulos e de financiamento para que as transformações estruturais das pastagens associem pastagens mais produtivas porque melhor divididas e conservadas com regeneração dos espaços de mata ciliar edificando as necessárias áreas de preservação permanente.
Somente assim haverá possibilidade de rápida recuperação desse espaço de vegetação nativa fundamental para o ciclo da água além de outros benefícios ambientais notórios e incontestáveis. Mas a prosa com o pecuarista dá a exata dimensão de que o mesmo pode e deve ser um aliado nessa busca de avanços ambientais. Basta que seja aberto um diálogo franco e direto para que seus anseios também sejam incorporados como relevantes na construção da sociedade do futuro, a qual se exige maior equilíbrio ambiental, também necessita de pioneiros e empreendedores da produção de proteína de qualidade.
Nesse caso, ao contrário dos arroubos de ambientalistas radicais, mais que polícia a solução requer mais política. Mais que investir na coerção acreditar na produção. Afinal em última instância quem será o responsável para que sejam reconstituídas em todas as propriedades rurais as necessárias dimensões das áreas de preservação permanente senão o agropecuarista. E se a realidade está desenhada como se verifica hoje isso decorreu do próprio processo de formação das propriedades rurais. Basta olhar onde ficam localizadas nas propriedades as sedes e os terreiros das fazendas antigas. O sucesso das políticas ambientais no caso das áreas de preservação permanente depende de que não sejam tornados adversários quem necessariamente deva ser aliado.


(*) José Sidnei Gonçalves é engenheiro agrônomo, doutor em Ciências Econômicas e pesquisador científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. E-mail: sydy@iea.sp.gov.br
  Voltar