Mercado
Nova política para a agricultura brasileira e a edificação de novo padrão de financiamento
São Paulo, 20 de julho de 2009    
Por José Sidnei Gonçalves e Sueli Alves Moreira Souza (*)

A edificação da nova política para a agricultura nacional que vem sendo realizada em intensos debates públicos pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Banco do Brasil e outras instituições e instâncias públicas e privadas no repensar do futuro da agricultura brasileira merece ser discutida. As colocações aqui realizadas consistem numa leitura livre e aprimorada de idéias que surgiram nessas discussões, incorporando a perspectiva de São Paulo, mas num compromisso de amplitude nacional. E o ponto de partida para isso consiste na necessidade de não apenas enfrentar a crise econômica, mas de edificar o novo em termos de políticas setoriais.
Por certo a grande expectativa relacionada ao Plano de Safras 2009-2010 está associada ao crédito para custeio da safra. A crise internacional ao produzir a redução do crédito internacional tem efeitos diretos e expressivos no padrão de financiamento que sustentou o recente “boom” da produção de grãos e fibras. No momento os pilares desse padrão de financiamento sustentado por mecanismos privados estão comprometidos. E para aumentar a dramaticidade, ainda persiste como herança desse processo, elevada dívida rural a espera de solução. O próximo Plano de Safras deve ao menos indicar o rumo dos caminhos a serem perseguidos na construção do novo padrão de financiamento.
Esse novo padrão deve ter em conta a enorme instabilidade da renda agropecuária. De um lado essa situação deriva de que a renda do produtor é determinada por condicionantes biológicos e climáticos. De outro pelo fato de que os poderes de mercado são muito díspares com o domínio de oligopólios nos bens de capital e insumos e de oligopsônios das agroindústrias processadoras e/ou das empresas de comercialização, frente aos agropecuaristas dispersos em número e num amplo espaço geográfico. Ademais, essa situação de disparidade se aprofunda com a elevada assimetria no acesso, nas condições de apreensão e processamento e na qualidade das informações sobre produtos e indicadores de mercado.
De outro ângulo, todos esses elementos formadores de expectativas que conformam o ambiente da decisão de plantio, têm sua potencialidade de corolários aprofundada pelo fato de que a decisão de produção –seja nas lavouras ou nas criações- conquanto esteja datada do curto prazo quando pensada no horizonte de uma dada safra, corresponde a uma decisão de investimento dada sua característica de que não pode ser revertida sem perdas econômicas significativas. Essa volatilidade exacerba-se se não for administrada dada a característica da sazonalidade da produção biológica. Não importa que para o consumo a complementaridade de safras de economias continentais como a brasileira e as possibilidades de armazenamento e/ou importação possam reduzir os impactos dessa sazonalidade sobre os preços.
Isso porque sobre os agropecuaristas dispersos em distintos e por vezes longínquos territórios, assimetricamente penalizados no acesso à informação em qualidade e rapidez, recaem todos os efeitos dos denominados “ajustes de mercado”. Na gangorra de preços quando tem produto os preços estão baixos e quando não tem vê os preços dispararem, ou seja, sua renda tende para baixo qualquer seja a conjuntura. E ainda sofre com as adversidades climáticas e os ataques de pragas e doenças além de outros fenômenos agronômicos. Daí ser fundamental o gerenciamento de riscos produtivos e de mercado que promovam avanços no sentido da garantia da renda do agropecuarista.
Há duas formas básicas de riscos enfrentados pelos agropecuaristas: o risco produtivo decorrente de fatores aleatórios de natureza agronômica e/ou climática e o risco de mercado. O gerenciamento dessas duas modalidades de risco mostra-se elemento crucial para o sucesso da agropecuária na economia moderna. Isso porque a decisão de produzir na agropecuária, diferentemente dos demais setores, tem sempre o ônus da irreversibilidade sem grandes perdas. Numa fábrica o empresário pode reduzir (ou aumentar) o ritmo da produção intervindo na linha de produção. Na agropecuária não, por determinação biológica o plantio concentra-se numa determinada época e, uma vez feito, não há outra alternativa senão chegar à colheita.
Assim, ao plantar o agropecuarista assume toda sorte de risco. Daí a importância do seguro rural. Mas não apenas esse risco ronda a produção. Há o risco de mercado uma vez que, quando planta, o homem do campo não tem qualquer possibilidade de previsão sobre os preços vigentes na época da colheita. Essa situação muitas vezes leva ao descompasso entre preços e custos gerando endividamentos por frustrações econômicas.
A escalada da dívida rural brasileira que ganha dimensões cada vez mais preocupantes está aí como comprovação da fragilidade do agropecuarista para enfrentar riscos de mercados. Daí a necessidade de inovar as políticas públicas gerando mecanismos de proteção de riscos de mercado que devem ser colocados à disposição dos homens do campo. Uma medida de segurança para o acesso a recursos públicos deveria ser o requisito da adoção obrigatória de mecanismos de gerenciamento de riscos na agropecuária.
Assim, seriam tornados obrigatórios o seguro rural e o seguro de preços como instrumentos complementares de garantia da renda dos agropecuaristas. E para viabilizar seriam constituídos fundos públicos para subvencionar os prêmios que compõem os custos desses modernos mecanismos de garantia de renda. Para tal há que serem superados os impasses referentes ao Fundo de Catástrofes, cujo Projeto de Lei enviado em maio de 2008, que estaria esbarrando em fortes divergências entre as empresas sobre a formação de um consórcio único para gerir os recursos do mecanismo de ressarcimento.
Trata-se de medida fundamental para baixar o custo das apólices ao produtor porque divide riscos e estimula mais seguradoras a entrar no negócio, dado o número reduzido de empresas que operam no segmento agropecuário. A questão consiste na possibilidade de conflito de interesses na administração do fundo realizada por concorrentes com diferentes estratégias, nichos de mercado e formas de atuação. Agregue-se a possibilidade de "mistura dos riscos" de perfis diferentes de produtores, além da existência de desconfiança mútua entre as companhias em relação à necessidade de capitalização igualitária do fundo. As seguradoras e resseguradoras pediram a formação de vários consórcios, negado pelo Governo.
Há também divergências quanto ao conceito de catástrofe, dadas as dimensões continentais da agricultura brasileira e os fenômenos e a intensidade deles varia muito em cada região. As seguradoras também reclamam da exigência de contribuição de todas as operações de seguro rural, inclusive no seguro-penhor para financiamento de máquinas, sem o devido benefício fiscal. Há que serem superadas essas pendências para que tal instrumento fundamental possa sustentar uma política de segurança da produção agropecuária como garantia de renda.
Mas, tal como outras medidas como a constituição de um cadastro do agropecuarista em instituição financeira discutida à frente na discussão da edificação das bases de um novo padrão de financiamento com base na empresa agropecuária, esse mesmo instrumento poderia servir para criar um seguro de perfil na produção agropecuária à similaridade dos seguros dos automóveis urbanos, com prêmios diferenciados segundo o histórico de catástrofes de cada empresa e/ou produtor agropecuário.
Neste sentido, devem ser adotadas medidas que superem a estreita leitura do zoneamento agrícola como instrumento de aprimoramento do seguro agropecuário. Por certo esse zoneamento ampliado em termos de culturas atendidas e com maior divulgação que massifiquem as informações reduzindo as assimetrias existentes configura um relevante instrumento de planejamento territorial e de decisão de produção. Mas para o aprimoramento do seguro agropecuário há que se pensar em instrumentos mais avançados. Nada mais consistente que o histórico de sinistros em produções realizadas em propriedades georeferenciadas para definição dos patamares do risco e, em função disso, do valor do prêmio a ser cobrado, diferenciando segundo o perfil do agropecuarista.
Desde logo, há também que criar demanda o que depende da subvenção ao prêmio, ainda caro e incompatível com a renda do produtor. Nesse contexto, há que ser revertida a anunciada decisão de cortar R$ 96 milhões na subvenção federal ao prêmio do seguro rural, que representa mais de um terço da dotação inicial de R$ 272 milhões para este ano. A subvenção federal criada em 2005 contribui para a estabilização da renda agropecuária e minimiza a necessidade de socorro público para as renegociações de dívidas. É mais barato para o governo estimular a cultura do seguro agrícola do que despender de vultosos recursos em prorrogações de dívidas que não interessam aos produtores agropecuários. E já há um acúmulo de dívidas que ainda não foi solucionado.
A nova política de seguro agropecuário na mesma medida em que altera mecanismos com a adoção da exigência compulsória para acesso a políticas oficiais e com os estímulos da diferenciação do prêmio segundo o perfil da empresa rural derivada do seu histórico de sinistros, também deveria incorporar a proliferação de fundos estaduais de subvenção prêmio em substituição aos atuais e destorcidos mecanismos de guerras fiscais adotados em muitas unidades da federação brasileira. Ao invés da pura e simples renúncia fiscal esses recursos poderiam subvencionar de forma complementar o prêmio do seguro agropecuário em até metade do valor residual decorrente do acesso à subvenção federal. Com isso o seguro agropecuário teria custo de apenas um quarto do prêmio fixado, que já seria cadente com a compulsioriedade, reduzindo de forma expressiva os ônus para a proteção de riscos.Ressalte-se que o Estado de São Paulo, que havia adotado de forma pioneira no Brasil a subvenção ao prêmio do seguro agropecuário, quando veio a subvenção federal associou-se à mesma criando um diferencial de que na agropecuária paulista o empreendedor paga apenas um quarto do valor do prêmio. E num passo à frente incorporando a idéia de seguro de renda via proteção de preços, o Governo do Estado de São Paulo realizará em conjunto com o Banco do Brasil, a subvenção equivalente à metade do valor do prêmio cobrado em contratos de opção, num projeto de financiamento do custeio agropecuário atrelado a contrato de opção, com instituição federal funcionando como lançadora de opções padronizadas para café, milho, soja e boi gordo.
Trata-se de experiência que com certeza, tal como o seguro agropecuário, será aprimorada a ponto de ser incorporada ao rol de instrumentos da nova política para agricultura brasileira. E da mesma forma a procura por instrumentos de gerenciamento de riscos que promovam garantia da renda setorial, mais barato que os dispêndios decorrentes das frustrações das expectativas de mercado, dada a gangorra de preços entre o plantio e a colheita, deveria ensejar a constituição de um Fundo de Estabilização da Renda Agropecuária no plano federal para subvencionar operações de contratos de opção atrelados ao crédito de custeio agropecuário – necessário atrelar como uma segurança contra especulação. E também os governos estaduais deveriam nesse modelo serem estimulados a constituírem fundos estaduais para subvencionar a metade do valor residual decorrente da subvenção federal a contratos de opção. Moderniza-se assim a institucionalidade da produção agropecuária, com o compartilhamento de risco entre o agente financeiro e os Tesouros Federal e Estadual, de acordo com o histórico da produção. Do mesmo modo, a compulsoriedade da adesão a mitigadores de risco também garante renda suficiente para a liquidação dos créditos contratados, preconizando o fim do atual modelo de prorrogações e renegociações da dívida agropecuária . Da mesma forma podem ser ensejados aprimoramentos mais consistentes dos títulos financeiros para os agronegócios (CPR,LCA, CDCA, CRA, CDA-WA, NCA).
Com relação ao crédito, essa redução implicou no aumento das taxas de juros para os tomadores de recursos adicionais aos garantidos pelos “mecanismos oficiais”, além de maiores exigências para contratação do financiamento, notadamente em termos de garantias e reciprocidade. Também foi irradiado um clima de insegurança das agroindústrias de insumos e máquinas na concessão de crédito para vendas a prazo, em função da ruptura de expectativas e da impossibilidade de formar perspectivas favoráveis para a realidade financeira dos seus clientes. Contribuiu ainda a redução do crédito para exportações devido à redução da disponibilidade e dificuldade na captação de recursos externos.
Há que indicar já no Plano de Safra 2009-2010, a mudança do padrão de financiamento. Essa mudança no padrão de financiamento deve associar a transformação no superado modelo de crédito rural existente com a formalização do segmento agropecuário focando a agropecuária a partir da constituição de empresas - pessoas jurídicas e não pessoas físicas - buscando maior transparência fiscal na mesma medida em que altera o sistema tributário incidente sobre a atividade. Para essa empresa agropecuária, numa transição de no mínimo duas safras (2009/2010 e 2010/2011), seria realizada renegociação das dívidas para quem aderir ao novo sistema de crédito rural.
Em relação ao financiamento, uma das prioridades defendidas pelo setor produtivo é a reformulação do atual sistema de crédito rural que financia a produção agropecuária. Entre as ações sugeridas está a criação de um modelo integrado, que consistiria na criação de um cadastro único para o produtor, permitindo que todos os bancos, tradings e seguradoras tivessem acesso às mesmas informações de cada produtor rural. Neste caso, o produtor teria de escolher um banco para centralizar informações neste cadastro. A concessão de crédito e da subvenção aos prêmios do seguro agropecuário e do contrato de opção ficaria condicionada à adesão a este sistema cadastral.
Outro instrumento seria a possibilidade da empresa constituída renegociar sua dívida a partir da apresentação de seu balanço patrimonial. Em complemento poderia ser realizado o refinanciamento dos débitos com base num programa de recuperação das empresas equivalente ao existente para empresas urbanas. Na verdade há que se buscar mecanismos mais permanentes de política setorial, com a adoção de medidas plurianuais e de encaminhamento das questões estruturais perenizadas pelo esgotamento do atual modelo se restringe ao plano de safra e do empurra-empurra das parcelas das dívidas. As sucessivas renegociações e reestruturações das dívidas nos últimos anos criaram o alto grau de risco de inadimplência da agropecuária nas carteiras do crédito bancário que consiste num dos principais empecilhos para obter empréstimos. E isso penaliza quem paga em dia com custos de gestão de riscos que não ajudou a criar.
Mas antes da entrada na nova safra que constitui o objeto do Plano Agrícola e Pecuário 2009-2010, há que se ter atenção ainda para a comercialização da safra em curso, que definirá quais os patamares de recursos próprios serão disponíveis para que os agropecuaristas possam aplicar em futuras decisões de plantio. Há que se ter maior atenção na manutenção de linhas de crédito a custos compatíveis – pois custos elevados podem inviabilizar formação de estoques - oferecendo recursos para o capital de giro para tradings companies, agroindústrias processadoras e agroindústrias e insumos. O apoio à comercialização configura-se como um pré-financiamento definidor das expectativas para as próximas safras. Ainda que se tenha nítida a tendência de que cada vez mais a obtenção do financiamento da produção se dará a mercado, necessário realizar transição consistente porque atenta aos sinais e manifestações da crise econômica.
Por isso, há que se garantir volumes de recursos compatíveis com a fluidez adequada da safra em curso, que se garantir um patamar de remuneração desejável reduzindo inadimplências consistirá em aumento da possibilidade de níveis mais elevados de oferta de crédito bancário, das agroindústrias e das tradings companies, minorando os problemas de fluxo de caixa pela queda da volatilidade da renda setorial. Ressalte-se que, ainda que as mudanças propostas sejam encaminhadas e algumas já adotadas, ainda se mostra imprescindível montante consistente de recursos oficiais para o crédito para a safra 2009-2010. Sem valores expressivos que sinalizem para o mercado uma aposta na continuidade do avanço setorial, a formação de expectativas já contaminada pelos efeitos perversos da crise mundial cujos impactos podem reservar indicadores não otimistas até a decisão do plantio, poderá comprometer a magnitude das próximas colheitas.

(*)José Sidnei Gonçalves, Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (e-mail: sydy@iea.sp.gov.br)

(*)Sueli Alves Moreira Souza, Economista, Pesquisadora Científica do IEA/APTA (e-mail:sueli@iea.sp.gov.br).
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