Mercado
Nova política para a agricultura brasileira: premissas em função da diversidade setorial
São Paulo, 8 de julho de 2009    
Por José Sidnei Gonçalves e Sueli Alves Moreira Sousa (*)

A elaboração do Plano de Safras 2009-2010 reveste-se de estratégico interesse para a agricultura brasileira, estando em jogo perspectivas futuras que podem formar: ou uma plêiade de expectativas favoráveis levando o setor a manter o ritmo de crescimento destes primeiros anos do século XXI ou enveredar para uma sucessão de problemas que comprometam as possibilidades de crescimento. Em função disso, mais que propiciar os instrumentos e os elementos que configurarão o ambiente econômico no qual serão tomadas as decisões de plantio para o ano safra vindouro, há que se lançar as bases da nova política para a agricultura nacional.
Nesta abordagem, com a preocupação de incorporar esforços no sentido da edificação dessa nova política para a agricultura nacional que vem sendo realizados em intensos debates públicos pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Banco do Brasil e outras instituições e instâncias públicas e privadas no repensar do futuro da agricultura brasileira. As colocações aqui realizadas consistem numa leitura livre e aprimorada de idéias que surgiram nessas discussões, incorporando a perspectiva de São Paulo, mas num compromisso de amplitude nacional. E o ponto de partida para isso consiste na necessidade de não apenas enfrentar a crise econômica, mas de edificar o novo em termos de políticas setoriais.
O desenho de uma política para a agricultura brasileira deve ter em conta as diferenças estruturais que lhe são inerentes, para que não fique o debate restrito a segmentos e grupos de interesses, não rompendo e ao invés disso aprofundando as distâncias sociais, econômicas e políticas entre os agentes sociais envolvidos. Os axiomas definidores derivam das duas funções essenciais da agropecuária no desenvolvimento econômico, quais sejam: a) a produção de riquezas e b) a regulação do mercado de trabalho.
Dessa maneira, a nova política agrícola superando as contradições da expansão recente da agropecuária na qual a amplificação significativa da riqueza gerada deu-se pela incorporação de novas fronteiras gerando impactos ambientais. A reversão dessa lógica exige estímulos econômicos além da adequada regulação e planejamento estatal. Noutro plano, esse avanço tem se dado com o aumento relevante do desemprego setorial, gerando massa de trabalhadores sem ocupação alternativa consistente, o que torna necessário destravar a política trabalhista que impõe padrão urbano inexeqüível ao campo.
Para tal não há como pensar a agricultura nacional como uma única realidade territorial. Para isso há que se ter nítido que a realidade conforma duas faces características quais sejam a:
a) agricultura dos agronegócios: crescente processo de inovação tecnológica e amplificação da produção de riquezas, elevada integração em cadeias de produção como lastro de complexas redes de negócios e,
b) a agropecuária de subsistência: reduzida intensidade de inovação tecnológica e manutenção das condições de sobrevivência, lógica das culturas, com baixa integração com os movimentos mais gerais da economia.
Essa dicotomia se expressa no mesmo espaço e são mutuamente determinadas na dialética do movimento das transformações econômicas. Não atentar para isso, significa fazer vistas grossas para o indesejável aprofundamento de contradições que se reproduz em conflitos, os quais acabam desaguando em conflitos e na violência do campo. Os desenhos dos instrumentos da nova política para a agricultura necessitam incorporar políticas compensatórias para a agropecuária de subsistência, sendo fundamental:
a) manter uma adequada proteção social para esses agropecuaristas brasileiros colocados à margem do processo de desenvolvimento da agricultura;
b) ensejar políticas de cunho social que permitam a manutenção de nível adequado de inserção produtiva, alargando as possibilidades de ganhos econômicos, em especial com destinação de produtos para mercados locais; c) buscar identificar a identificação de potenciais singularidades que pudessem suscitar projetos de desenvolvimentos locais e territoriais explorando oportunidades de nichos de mercado com produtos diferenciados na origem; d) execução de programas sociais que garantam qualidade de vida digna ao mesmo tempo em que rompa com a reprodução nos filhos das inadequadas condições sociais dos pais, priorizando a educação dirigida.
Dado ao padrão tecnológico elevado da agricultura brasileira, o mesmo consiste numa elevada barreira à entrada num processo onde as médias vem crescendo pela eliminação dos empreendimentos de menor produtividade. Ademais a necessidade de irradiação de boas práticas produtivas, comerciais e de gerenciamento de riscos biológicos e econômicos exige a ação edificadora da extensão rural, no seu mais essencial conteúdo educativo e formador de novos comportamentos. Desse modo, tendo em conta o mosaico de territorialidades formador da agricultura brasileira, há que se estruturar abordagens focadas nas realidades locais com base no alicerce de efetiva intervenção da extensão rural.
Mesmo na denominada agricultura dos agronegócios, existem dois padrões que se complementam, constituindo especificidades que se complementam e interagem: a) o padrão texano de agricultura: mais intensivo em capital, alta relação capital-trabalho, economia de escala pela mecanização de processos e extensivo em terra, focado em produtos de baixo valor unitário, uniformidade como característica desejada e, b) o padrão californiano de agricultura: mais intensivo em trabalho, menor relação capital-trabalho, focado em produtos de alto valor unitário, intensivo em terra (cultivos adensados e cultivos protegidos), diferenciação pela qualidade extrínseca e intrínseca.
Pelas suas características estruturais, os instrumentos da nova política para a agricultura devem ter em conta essas especificidades quando focando cada padrão. Nas políticas para o padrão texano de agricultura, a liderança brasileira na agricultura tropical de commodities deve ser ampliada com financiamento do custeio a mercado. Nessa agricultura de commodities as políticas públicas devem ter quatro eixos fundamentais de sustentação:
a) mobilização de recursos para investimentos em níveis compatíveis, evitando o sobre-investimento que gera endividamento irracional, também a custos compatíveis;
b) política de qualidade de produtos e processos, focada na uniformidade de padrões e garantia de superação das barreiras não tarifárias no mercado internacional;
c) gestão de riscos agronômicos pela implementação de política de seguro rural, com ação de redução do prêmio das apólices para a agropecuária;
d) gestão de riscos de mercado, ensejando mecanismos de barateamento dos custos dos mecanismos de proteção de preços, visando estabilidade da renda agropecuária.
Já nas políticas para o padrão californiano de agricultura, há que ser construído o moderno complexo produtivo da agricultura intensiva em trabalho no Brasil, com políticas de investimentos que solidifiquem estruturas diferenciadas. Nessa agricultura diferenciada, as políticas públicas devem ter quatro eixos fundamentais:
a) transformação de diversidade regional em oportunidades pela ação focada no aprofundamento das singularidades produtivas regionais e sub-regionais;
b) Os ganhos de escala nessa cadeia de produção ocorrem nos elos existentes após a agropecuária, via complementaridade de safras e ampliação dos períodos de safra, exigindo ação pública de orquestrar interesses para a efetivação desse objetivo;
c) A qualidade extrínseca e intrínseca, além da especificidade do mercado de perecíveis, exigem regulação estatal inclusive das boas práticas econômicas, economia de contratos e elevado domínio de complexa base técnica pela interação homem/planta/ambiente, determinante da produtividade e da qualidade;
d) Ação governamental deve estruturar a formação desse complexo produtivo, investindo na formação de agropecuaristas, na orquestração de interesses pela regulação da qualidade de produtos e processos e das práticas comerciais, além do incentivo à necessária complementarização de atividades.
As políticas para agricultura focada na redução das disparidades sociais e econômicas, devem aproveitar as oportunidades de inclusão social com o padrão californiano de agricultura. Conquanto exija elevado padrão de base técnica, o desenvolvimento das singularidades produtivas regionais (e culturais) representam uma oportunidade de inclusão de agropecuaristas da agricultura de subsistência, desde que focando nichos de mercado para transformar diferenças em oportunidades:
a) identificando e potencializando possíveis vantagens de origem que possam ser desenvolvidas conferindo singularidades a determinados produtos, ensejando diferenciação de qualidade com foco nas oportunidades advindas da exploração de vantagens qualitativas tais como origem étnica, produção orgânica, especificidades regionais;
b) estruturação de mecanismos apropriados e específicos para os diversos horizontes dessa produção diferenciada e singular, tendo em conta a construção de mercados compatíveis com essa visão, aproveitando-se de nichos de mercado no plano interno e externo;
c) a regulação dessa qualidade singular exige normas e procedimentos específicos, o que exige, mantendo um padrão social e mercadológico compatível, especifidade na conformação das normas de qualidade de produtos e processos, para que não sejam uma “camisa de força” impeditiva do fortalecimento desse segmento produtivo socialmente estratégico;
d) ação governamental de inovação tecnológica com especificidade regional e orientada para a potencialização da singularidade e não para a sua supressão impingindo desnecessária commoditização dos produtos e processos. A diferença deve ser priorizada.
A crise que abalou a economia mundial na segunda metade de 2008, com efeitos perversos sobre a demanda das maiores nações capitalistas associada à redução dramática da liquidez internacional reduzindo o acesso ao crédito, o que impacta duplamente as exportações da agricultura nacional, traz também outro componente, qual seja, a desvalorização cambial que encarecendo os produtos importados altera os preços relativos de tal forma que interfere na dinâmica da composição de culturas. Noutras palavras, os produtos que tiveram sua expansão ancorada na exportação vêm sua demanda refrear tendo impactos negativos, enquanto aqueles cujo abastecimento dependia de importação face à não competitividade da produção interna recebem reflexos positivos.
Essa situação por si mesma já requer atenção para o Plano de Safras 2009-2010 com avaliação detalhada das perspectivas de mercado para os distintos produtos, em especial visando tomar medidas que garantam a produção para o abastecimento interno de produtos encarecidos com a mudança cambial. Ressalte-se que essa atenção diferenciada quanto aos diversos produtos mergulhando nas especificidades decorre de outro fato nem sempre considerado, qual seja a especialização regional na medida em que tanto na geografia mais ampla do território nacional como mesmo na paulista em particular, verifica-se a ocorrência de territorialidades específicas que conformam a necessidade de criar e aplicar instrumentos de políticas compatíveis com cada desenho territorial da produção.
Nesse contexto as políticas para o trigo, que face ao movimento desvalorizador do câmbio pode ensejar a retomada do testado e aprovado binômio trigo-soja em todo sul-sudeste, devem ser analisadas e tratadas com cuidado. Em primeiro lugar para que não se repita a terrível conjuntura de 2008 quando instados a plantarem trigo dados preços elevados da matéria prima para panificação, confeitaria e massas alimentícias, foram os produtores surpreendidos na colheita com preços não remuneradores aviltados ainda mais com benesses fiscais ao trigo importado. Em segundo lugar porque se trata de produto essencial que concorreria para a elevação da renda agropecuária de espaços territoriais importantes.
Essa leitura territorial da agricultura brasileira e mesmo das unidades da federação exige atenção peculiar para que as diferenças não sejam exacerbadas configurando disparidades indesejáveis. Há, portanto, que serem criados instrumentos numa visão integradora e convergente para o desenvolvimento da totalidade da agricultura nacional. Tome-se a produção de soja como exemplo, numa realidade em que os preços do diesel que mostram rigidez para baixo – ainda que os preços do petróleo tenham despencado no mercado internacional recuando mais que proporcionalmente à valorização cambial-, as situações das zonas produtoras mais próximas dos grandes centros processadores e consumidores e portos de embarque são mais favoráveis que aquelas mais distantes como os cerrados.
Há que se tomar medidas redutoras do diesel como combustível que move as lavouras mecanizadas ao mesmo tempo que reduzam os custos de transportes que leva insumos e traz produtos. Sem isso, para o mesmo produto as realidades formadoras de expectativas na safra serão diferenciadas para a mesma atividade, segundo a localização territorial. Esse chamar de atenção para as especificidades territoriais que fazem da agricultura brasileira um mosaico de realidades também exige pensar a nova política agrícola numa amplitude maior que os grãos e fibras que são os principais contemplados nos Planos de Safra.
No caso paulista exige-se que seja considerado o fato que o complexo estadual produtor de açúcar e álcool, o de maior participação na geração da renda bruta estadual e com maior dimensão de área dentre as lavouras, convive com baixos preços internacionais do açúcar há mais de dois anos. A crise econômica mundial traz elementos novos que produzem a necessidade de que sejam desenhadas políticas consistentes com a construção de solidez a esse segmento da agricultura, não apenas no sentido de sustentar as exportações de açúcar no enfrentamento da redução das disponibilidades de crédito internacional como outras que permitam a produção de álcool superar a conjuntura de petróleo barato.
A equalização tributária no território brasileiro representa um elemento fundamental para criar-se um mercado nacional para o álcool combustível, não fazendo sentido um discurso de priorizar a criação de um mercado internacional tornando o álcool uma commodity, se no plano interno diferenças de tratamento tributário levam a diferenças exorbitantes de preços e com isso da opção do consumidor pelo álcool em relação à gasolina. Para tanto há que se buscar a revisão da tributação associada ao álcool envolvendo tanto tributos estaduais como federais.
Ademais, outra especificidade da agricultura paulista consiste no elevado grau de agregação de valor. Nas exportações setoriais paulistas mais de 80% são de produtos processados, enquanto nas demais unidades da federação mais da metade são de produtos básicos. A denominada Lei Kandir - Lei nº87, de 13 de setembro de 1996 que desonera do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) os produtos primários ou semi-elaborados e serviços destinados à exportação- acaba penalizando a agroindústria paulista demandadora de matérias primas oriundas de outras regiões brasileiras. A revisão adequada desse isntrumento consiste numa necessidade estratégica para que a agricultura paulista amplifique sua capacidade de agregação de valor.


(*)José Sidnei Gonçalves é Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (e-mail: sydy@iea.sp.gov.br)

(*)Sueli Alves Moreira Souza é Economista, Pesquisadora Científica do IEA/APTA (e-mail:sueli@iea.sp.gov.br).
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