Mercado | |||
O apanágio da elasticidade | |||
São Paulo, 30 de junho de 2009 | |||
Celso Luis Rodrigues Vegro (*) "A crítica quando desamparada pelos esclarecidos é exercida pelos incompetentes” Machado de Assis – O Ideal do Crítico. Esgrimir os dogmas pertence ao ofício do autêntico cientista. Discutir, portanto, a legitimidade da condição inelástica (1) da demanda do café é um assunto por excelência, especialmente, por se tratar de uma caríssima premissa para os pseudoconhecedores desse mercado. Penso eu que sob a roupagem da inelasticidade se oculta o lugar comum da fácil procrastinação. O conceito econômico de elasticidade mensura quanto uma determinada mercadoria está sujeita as variações na oferta ou procura em decorrência das variações de seus respectivos preços. São considerados inesláticos aqueles bens que sob efeito de movimentações na renda disponível, não exibem na mesma proporção de intensidade alterações no patamar da demanda. O café é tido, usualmente, como exemplo bastante característico de bem inelástico. Amparados nesse estatuto, a maior parte dos analistas (senão todos) do mercado de café assevera que não se devem esperar quedas relevantes na demanda mundial pelo produto em decorrência da crise. Todavia, não haverá limites para tal particularidade? Melhor dizendo: será que sob qualquer tipo de oscilação da renda a demanda por café permanecerá incólume? O retrospecto do colapso financeiro seguido de crise econômica precisa ser nessa altura recuperado. O desmantelamento dos mecanismos que permitiam o financiamento do consumo estadunidense foi o estopim da ruína que se espraiou para o restante do globo. Excetuando-se os casos do Reino Unido (basicamente a estatização e a falência de bancos comerciais), foi no Leste Europeu e na Rússia que os impactos de curto prazo da crise estadunidense se fizeram sentir com maior vigor. O anêmico Japão entre a carona na economia chinesa e o fantasma da deflação, se equilibra sobre o gume da navalha. Na atualidade, porém, é a eurolândia que passou ao cabeçalho dos periódicos econômicos como pólo de concentração de severos problemas econômicos. Nessa última região, dados apontam para encolhimento de 4,5% do PIB, declínio esse que se transmite sob dramática forma de destruição líquida no estoque de empregos formais. A crise econômica contagiou o mercado de trabalho que exibe mensalmente montante de desligamentos recordes, ou muito próximos dele, em todos os países em que esse indicador possa ser acompanhado. No Brasil, o IBGE divulgou a evolução do PIB no primeiro trimestre de 2009 contabilizando resultado negativo de 0,8% no período. Alarmante foi a queda do PIB setorial da indústria com -3,1%, compensado, parcialmente, pelo crescimento observado no segmento de serviços. É importante ressaltar que a qualidade do emprego no segmento de serviços é bastante inferior aquela praticada na indústria (somando-se vantagens e benefícios). Possivelmente, nos próximos trimestres, a economia brasileira se recuperará, minimizando o impacto doméstico da crise internacional. Também, o nosso mercado de trabalho contará com a destruição líquida do estoque de empregos, a depender do ritmo com que ocorra a almejada recuperação econômica. Tomando-se isoladamente a massa salarial enquanto indicador aproximado para a renda dos consumidores, a contração observada no mercado de trabalho em escala sem precedente traduzir-se-á em um encolhimento monumental da renda. Sim, há o reconhecimento generalizado de que o consumo de café sofrerá impactos da crise econômica. Naqueles mercados considerados maduros com baixo ou nenhum crescimento líquido da demanda, espera-se a parcial substituição da apreciação do produto em condição fora-do-lar pelo consumo no lar. As principais bandeiras de casas de café, por exemplo, já anunciaram a oferta de bebidas mais em conta, preparadas a partir do solúvel ou obtidos a partir de grãos em que o robusta compõe parte expressiva da liga. Assim, resvalando para a redundância, sabe-se a muito o quê acontece com o consumo quando o robusta passa a prevalecer na liga, sendo o caso alemão nesse sentido bastante emblemático: ENCOLHIMENTO DO MERCADO (2). Nos países emergentes em café (Rússia, Leste Europeu e asiáticos), a preferência dos consumidores pelo solúvel constitui-se numa realidade desses mercados. A crise econômica não apenas fortifica ainda mais a aludida preferência, como também bloqueia o natural caminho para o avanço do torrado e moído como bebida de maior apreciação. Em sendo o solúvel um produto de alto rendimento (3), o aumento de sua demanda consiste numa menor procura por matéria-prima para transformação no balanço global da industrialização do produto, ou seja, menos café verde será destinado para o suprimento da torrefação refletindo-se, conseqüentemente, na redução da demanda mundial pelo produto. Salteia-nos a impressão que as estratégias empresariais, defensivamente posicionadas, passaram a contemplar a mudança conjuntural da demanda (4). O fortalecimento das marcas de produtos mais baratos e as marcas próprias das redes de varejo assumem posição de destaque nas gôndolas. Aparentemente, tais estratégias não deveriam causar maiores temores quanto à evolução do consumo, porém na medida em que se contrai o valor agregado pela cadeia, menor é a liquidez circula pelo sistema pressionando-se os mecanismos de formação das cotações com maiores perdas dentre aqueles que se posicionam enquanto passivos tomadores de preços. Ademais, sem perspectivas claras para o comportamento do câmbio (poder de compra do dólar estadunidense) associada à intensa volatilidade da cotação das commodities, tornou a decisão de imobilização de capital sob forma de estoques uma grande temeridade pelo potencial de perdas financeiras que pode causar ao empreendimento. Esses condicionantes da dinâmica empresarial são decisivos na compreensão do comportamento da demanda por café e o grau de persistência da acreditada inelasticidade sob tal contexto. Retornando ao ambiente estadunidense o que se pode esperar para o consumo naquela esfrangalhada nação? A brutal dilapidação patrimonial das famílias propende pra uma trajetória inescapável de esforço por sua reconstituição. Desse modo, parcela significativa da renda deverá ser poupada com o intuito de recuperar o patrimônio perdido (5). Se não bastasse essa cautelosa contingência, seus concidadãos não terão meios para escapar do aumento de impostos para permitir ao governo central honrar os compromissos financeiros assumidos que foram para mitigar o impacto da crise econômica. O déficit do tesouro já alcança inimagináveis 14% da receita esperada. Assim, sem lançar mão do aumento de impostos a alternativa de saldar esse rombo é causando alguma inflação o que, por sua vez, também, debilita ainda mais a renda das famílias. A verdade é que a renda está sob estresse seja por desemprego ou por outros fatores de ordem macroeconômica. Sob esses múltiplos ataques a inelasticidade do café não poderá resistir naqueles mesmos moldes com que é sempre lembrada. Finalmente, um elemento geralmente esquecido pelos nobres colegas imbuídos pela criação de inteligência para melhor compreensão do mercado de café. Antes de se pensar qualquer modelo que contemple o consumo necessita-se reconhecer que o café não é alimento. Ao consumi-lo não se obtêm qualquer caloria necessária ao funcionamento de nosso organismo. Assim, o aviltamento da qualidade da bebida seja pela expansão do robusta na liga, seja pelo aumento da demanda do solúvel, elimina a condição básica de atração do consumidor, qual seja, a satisfação que a xícara propicia ao seu apreciador. Alienado desse atributo fundamental, beber café para a vala do produto supérfluo e dessa forma passível de ser “esquecido” da lista de compra mensal das famílias. Essa é uma percepção que se constitui numa minha contribuição aos jovens pesquisadores: compreender o comportamento do consumidor estando a renda sob estresse. Que surjam novos projetos de pesquisa! Repúdio a modelos estanques O edital de lançamento das opções públicas de café está pronto para publicação no Diário Oficial. Pelas informações preliminares que pudemos colher junto aos gestores desse programa, o padrão de qualidade requerido será o da o tipo 6 bebida dura, base dos contratos negociados na BM&F-Bovespa, como já foi o caso da edição anterior dessa mesma política. Porém, cabem aqui algumas considerações: a)os defensivos de última geração tornaram-se grandes aliados dos cafeicultores no tratamento fitossanitário de suas lavouras. A baixa dosagem em aplicações via solo, relativamente mais seguros quanto à saúde do aplicador e formação de resíduos, associados a um amplo espectro de controle, fazem desses defensivos uma opção muito interessante para emprego no manejo da lavoura. Todavia, um efeito secundário que tem sido agronomicamente constatado que é o retardamento da maturação dos frutos, ou seja, o tempo de permanência no estágio fenológico de verde ampliou-se dificultando o manejo da lavoura dos cafeicultores que se aplicam pela qualidade do produto; b)os preços praticados nas principais praças de comercialização do produto induz aos cafeicultores ao relaxamento do quesito qualidade seja por iniciar a colheita mais cedo ou por acelerar os processos de secagem (encurtar o tempo de terreiro, menor vezes de revolvimento, camadas mais altas e por fim elevação da temperatura do secador). O ardimento dos cafés verdes e pretos é uma decorrência inescapável; e c)a possível escassez de mão-de-obra de colheita obriga aos cafeicultores aproveitarem-se ao máximo dessa oferta de trabalho o que, evidentemente, não se vincula a qualquer tipo de controle sobre a forma como esse trabalho será conduzido. Numa difícil escolha, será sempre melhor ter os frutos no alqueire de roça do que caídos ao solo sem quem os varra. Sob essa multiplicidade de fatores pode-se de antemão prever que os cafeicultores encontrarão muita dificuldade em entregar o produto na qualidade exigida. Numa situação como essa e posicionando-se as cotações em patamares em que se torna mais vantajoso o exercício da opção adquirida, naturalmente surgirá campanhas junto aos seus visinhos ou até em outras praças visando encontrar o tipo de produto exigido pelo contrato. Resulta disso a necessidade de adoção de modelos mais flexíveis. Como sugestão aos gestores, poder-se-ia anuir com a possibilidade de entrega de cafés dentro das especificações de qualidade estabelecidas pelo contrato, mesmo que procedente de safras anteriores, mas comprovadamente pertencentes ao produtor aderente ao programa. Tal permissão não corromperia o objetivo da política que é o de regularizar o fluxo de comercialização e contribuir com a elevação das cotações. Ser o produto entregue pertencente à safra atual ou de outra qualquer (preservado o padrão de qualidade), mantém-se o mérito do esforço público e confere-se maior grau de liberdade aos cafeicultores, algo absolutamente necessário no atual contexto. O produtor precisa ter garantido a oportunidade de entregar seu próprio café e, através disso, reconhecer o nobre esforço que os gestores do Governo Federal desenvolvem com o intuito de preservar seu negócio e, em última instância, seu bem estar. Acervo de vulgaridades incolores Algumas lideranças dos cafeicultores (6) se esfalfam redigindo epístolas contra o coordenador da secretaria de agroenergia do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Trata-se de um episódio de crescente desinteligência epidêmica. Penso que a energia despendida nessa postura é justamente aquela que parece faltar em fazer produzir suas lavouras. A cafeicultura brasileira possui um viés que em outro lugar não se encontra: os diferenciais de produtividade considerando sistemas de produção semelhantes. Lavouras comerciais de arábica cultivadas sob sequeiro podem exibir produtividades médias que vão das 15sc/ha até as 40sc/ha. Evidentemente que as de menor produtividade, por mais que se queria mantê-las economicamente viáveis, não há o que fazer senão jogar a toalha. Conscientizar-se dessa realidade é um passo doloroso para as lideranças, porém inevitável quanto se tem por horizonte a construção de uma cafeicultura competitiva em custos e qualidade. Não é por falta de esforço em transferência de tecnologia que explica os diferenciais de produtividade observados. A problemática é muito menos agronômica mas totalmente determinada pela estrutura da sociedade brasileira que se assenta não no trabalho, mas na concentração de patrimônio. Ser proprietário, fazendeiro ou outras formas de apropriação de riqueza consiste na chave de se apropriar de outras fatias da riqueza socialmente produzidas ou pelo Estado remanejadas. O acesso ao crédito rural com taxas que nem entre pai e filho se praticam é uma maneira de explicar esse pouco caso com a tecnologia e o permanente lamuriar por mais benefícios, logicamente, capturados do bolso alheio. O exemplo paulista é nessa altura mais que oportuno (7). Os dados de nosso último censo são elucidativos do processo que precisa ser reproduzido nos demais cinturões produtores. Em onze anos (período transcorrido entre os censos), a cafeicultura paulista perdeu 3.305 unidades de produção (critério similar ao estabelecimento do IBGE), perfazendo uma cobertura territorial de 8.730 ha. Esse encolhimento, porém, foi mais que compensado pela especialização nas regiões em que a cultura e vocacionada. Foi por meio do aumento da produtividade promoveu-se o incremento na oferta do produto que migrou das apenas 3,0 milhões de sacas para as atuais 4,5 milhões de sacas por safra. Materiais geneticamente aprimorados cultivados sob maior grau de adensamento associado a manejo de podas, irrigação e outras práticas culturais (colheita mecânica, descascamento) formam o conjunto de aspectos que explicam tal modificação que certamente é de natureza estrutural. O escopo dos pleitos é tão vicioso que se fosse plenamente atendido (pagamento em produto na proporção de 5% da safra com prazo de 20 anos para a quitação do passivo) todas as cooperativas de crédito que atuam em café quebrariam. A desconsideração para com as instituições pilares no desenvolvimento agrícola é uma característica da falta de inteligência quanto aos limites daquilo que na base do berro se almeja. As lideranças representativas do pensamento rentista da cafeicultura brasileira, ainda que com passagens pela estrutura de governo, parecem desconhecer que o alto escalão do MAPA é quase que refém de pelo menos outros cinco ministérios igualmente importantes no que tange a política agrícola. Fazenda (BACEN e CMN), Planejamento, Meio Ambiente, Trabalho, Relações Exteriores pautam mais os assuntos de café que o Sr Ministro da Agricultura. O processo de negociação com as demais pastas é complexo e muitas vezes não escapa de acerbos embates. Um cuidadoso escrutínio de todas as ações orientadas para o agronegócio café nos último dois anos demonstrará o acerto da maior parte das iniciativas8. O momento é para se rejubilar. Quanto às conversas fiadas é melhor deixar para quando o mundo se acabar. 1 O conceito de elasticidade-renda da demanda é uma medida da variação da quantidade demandada de um bem quando a renda do consumidor é alterada, mantendo-se constantes todos os outros fatores que influenciam a demanda. . 2 Existem algumas hipóteses sobre esse fenômeno no mercado sendo a mais aceita aquela que relaciona o fato com o maior teor de cafeína do robusta e a aversão fisiológica que o organismo exibe diante de uma xícara ligeiramente mais cafeinada. Tal hipótese foi pela primeira vez levantada pelo saudoso Dr. Ernesto Illy. 3 Em igual volume o solúvel prepara até 10 vezes mais xícaras que o torrado e moído. 4 Por enquanto se tratam de uma mudança conjuntural por ter por horizonte o ano fiscal de 2009. Caso a crise econômica persista por mais tempo e por conjunto expressivo de países e mercados, o fenômeno pode se tornar estrutural. 5 Para a efetividade da reconstrução do patrimônio das famílias estimativas apontam que o patamar de poupança da renda situe-se ao redor de 10% pelos próximos 10 a 15 anos. 6 Líderes das mais importantes cooperativas do Sul de Minas e de São Paulo pronunciaram-se contra tais espúrias manifestações. 7 O estudo completo pode ser encontrado nos anais do VI Simpósio de Pesquisas Cafeeiras. Vitória/ES, 02-05/06/2009. 8 Para ser honesto com aquilo já comentei destaco apenas os conhecidos desvios observados com a implementação do PEPRO. (*) Celso Luis Rodrigues Vegro celvegro@apta.sp.gov.br Pesquisador do IEA-APTA/SAA |
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