Mercado
Biocombustíveis, massas em rebelião e preços dos alimentos
São Paulo, 11 de agosto de 2008    
Nos últimos meses deste ano de 2008, a mídia em escala planetária deu destaque à discussão sobre os impactos que estariam sendo produzidos pela opção pelos biocombustíveis na produção, e principalmente, sobre os preços internacionais de alimentos. Autoridades e instituições se posicionaram a respeito cada qual apresentando distintos argumentos para fatos inegáveis representados pelas multidões em protesto em diversas nações do globo, notadamente as mais pobres. Isso gerou preocupação em cadeia de destacadas autoridades mundiais sobre a fome no mundo.
A questão na verdade, decorre da pobreza de diagnósticos sobre o tema, normalmente realizados com base em modelos econométricos, que tendo seu valor enquanto simplificações da realidade, apresentam resultados que apenas constatam, devendo ser explicados à luz da teoria econômica. Desde logo ao próprio sentido de uma idéia tão cara aos economistas representado pela globalização revela que a economia mundial corresponde a um mosaico de economias regionais que se intercomunicam num vasto e complexo sistema de vasos comunicantes.
As ondas de protestos por causa da carestia de alimentos abarcam inúmeros países, sendo que “até agora, a ONU já identificou crises e protestos em países como o Egito, Camarões, Costa do Marfim, Senegal, Burkina Faso, Etiópia, Indonésia, Madagascar, Filipinas, Haiti, Paquistão e Tailândia. Em alguns desses países, os governos tiveram de convocar o exército para lidar com os protestos contra o aumento nos preços dos alimentos” (1). No caso do Haiti, o mais pobre do continente americano, “milhares de manifestantes contra os altos preços dos alimentos foram às ruas da capital Porto Príncipe nesta segunda-feira, forçando o fechamento de comércios e escolas, enquanto os protestos se espalham pelo país... `Estamos famintos´, gritavam alguns. Outros carregavam cartazes dizendo `Abaixo a vida cara`”(2). Trata-se de convulsão social onde o estomago acaba roncando mais alto que o cérebro. Os países envolvidos são tão pobres e atrasados que não possuem capacidade produtiva capaz de realizar a oferta de alimentos compatível com o padrão de preços vigentes no mercado internacional.
Em função disso as autoridades locais têm quase nenhuma margem de manobra, tendo em vista que a vigência durante longo período de preços internacionais mantidos baixos por políticas de subsídio às exportações norte-americanas (PL 480) e européias, produziu a deterioração e/ou a não constituição de capacidade produtiva nacional. Tanto assim que como única resposta, “o presidente haitiano disse que vai se reunir com importadores de produtos alimentícios para tentar reduzir os preços dos produtos básicos. Também pediu aos haitianos que consumam produtos nacionais, avaliando que isso pode contribuir para resolver a crise atual” (3). A fragilidade da decisão governamental mostra a completa incapacidade nacional de enfrentar a crise de alimentos pela magnitude da mesma, numa situação onde “os preços dos produtos alimentícios subiram dramaticamente em uma semana, no Haiti, onde um saco de pouco mais de 50 kg de arroz, o alimento mais popular, foi de US$ 35 (R$ 59) para US$ 70 (R$ 119) num país com 8,5 milhões de habitantes, que tem 80% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, com menos de US$ 2 (R$ 3,4) por dia” (3). Nessa situação de carestia e fome que tende a piorar ainda mais no curto prazo, a sustentabilidade de governos se mostra difícil, isso tanto no Haiti como em qualquer nação periférica. E o meio para manter-se consiste no uso da força militar de repressão.
Por razões humanitárias e /ou estratégicas para reduzir migração em massa de suas ex-colonias, as convulsões acabaram provocando a preocupação dos países ricos europeus. “O primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, enviou uma mensagem a seu colega japonês, Yasuo Fukuda, para pedir que durante a1 próxima cúpula dos oito países mais industrializados (G8), que ocorrerá no país em julho, o impacto dos biocombustíveis no preço dos alimentos seja examinado, afirmando que `o aumento do preço dos alimentos ameaça anular os avanços em matéria de desenvolvimento obtidos nos últimos anos. Pela primeira vez em décadas, o número de pessoas que sofrem com a fome aumenta´”(4). Outra reação mostra a “França está muito ´preocupada´ com a revolta desencadeada no Haiti e em outros países, declarou a secretária de Estado para os Direitos Humanos Rama Yade, que pediu aos países doadores que ´atendam com urgência´ o pedido de 500 milhões de dólares feito pelo Programa Alimentar Mundial (PAM). `Nós, franceses, estamos muito preocupados com esses motins de fome. É preciso pôr a globalização em seu lugar`”(5). Aceita-se assim a tese de que a tese de que os biocombustíveis afetam os preços dos alimentos e que, para nações pobres e que não produzem o seu sustento, os efeitos da globalização podem ser dramáticos numa realidade de inflação derivada de preços mais altos dos alimentos. E as pressões sociais para evitar migração em massa das ex-colonias párea as antigas metrópoles estão na ordem do dia das políticas nacionais.
As agências internacionais mais relevantes também vêm manifestando constante preocupação com o desenrolar dos fatos. Tanto assim que, “no início de abril, o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, havia proposto um `novo contrato` alimentar em nível mundial para enfrentar o aumento dos preços dos produtos agrícolas. `Este novo contrato tem como objetivo enfrentar tanto as emergências alimentares como estimular o necessário desenvolvimento a longo prazo da agricultura`, destacou em uma entrevista divulgada pelo jornal francês `Le Monde´”(4). Noutra tomada de posição de outra autoridade importante, agora da União Européia, “o comissário europeu para o Desenvolvimento, Louis Michel advertiu que ´delineia-se uma crise alimentar mundial, menos visível que a crise do petróleo, mas com o efeito potencial de um verdadeiro maremoto econômico e humanitário na África´”(4). Tanto a presidência do Banco mundial - que até pouco tempo atrás era o negociador norte-americano nas rodadas internacionais para liberalização do comércio - como a autoridade européia, convergem nas suas opiniões quanto à gravidade da crise de alimentos para as nações mais pobres.
E também, são reduzidas as possibilidades de que tais desajustes sejam solucionados no curto prazo, tanto que “ a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) alerta que a situação pode piorar ainda mais nos próximos meses. Dados divulgados apontam que apenas a conta de cereais para os países mais pobres poderá aumentar em 56% neste ano, em comparação ao ano anterior. Entre 2006 e 2007, o total pago pelos países em desenvolvimento pelos cereais já havia aumentado 37%. No geral, a alta nos preços dos alimentos já está deixando 37 países em crise. Vários produtores ainda colocaram taxas de exportação para tentar reduzir os preços internos. Mas acabaram gerando uma alta ainda maior nos mercados internacionais. Em março, os preços do arroz e do trigo eram duas vezes maiores que seus níveis de 2007. O milho teve um aumento total de 30% em relação ao ano passado, depois de já ter sofrido uma alta de 100% desde 2005. Como resultado, pão, leite e outros alimentos básicos tiveram seus preços aumentados de forma substancial” (5). Verifique-se que se trata da incapacidade das nações de importar alimentos em função da precariedade das contas externas. Não é demais destacar que essa consiste numa face pouco levada em conta pelos analistas que acompanham as negociações internacionais para liberalização do comércio. As vantagens européias para produtos de ex-colônias representam uma das únicas formas de permitir alguma exportação da agropecuária das mesmas e os subsídios às importações, uma possibilidade de que as populações desses paises pobres obtenham alimentos.
A outra face da moeda, também não considerada por muitos interlocutores, consiste que a resposta de oferta de curto prazo não poderá vir das agropecuárias locais que não estruturam capacidade produtiva compatível com um mínimo de segurança alimentar nacional. Na maioria das vezes há que se construir não apenas os alicerces das economias capazes de gerar auto-suficiência alimentar, mas principalmente erguer mesmo um Estado Nacional. Sem isso, para os mais pobres a situação se mostra dramática e não há perspectivas de solução no curto prazo. “Segundo Henri Josserand, representante da FAO, os alimentos representam entre 10% e 20% dos gastos de consumo de uma pessoa em um país rico. Com a alta recente nos preços, famílias nos países mais pobres gastam até 80% de seus salários só para se alimentar. O que preocupa a FAO é que não há sinais de melhorias significativas. A produção de cereais no mundo em 2008 deve aumentar em apenas 2,6%. O resultado deve ser o menor nível de estoque desse setor nos últimos 25 anos, com apenas 405 milhões de toneladas. Essa taxa é 5% menor aos estoques de 2007” (6). Mas a causa da crise continua latente, escamoteada por meio de ajudas humanitárias que são fundamentais no curto prazo para que se evite o aprofundamento dos conflitos, uma vez que não estão desenhadas nem existem esforços visíveis de empreender mecanismos que promovam as transformações das economias locais no sentido da maior auto-suficiência. Não basta projetar estímulos, sendo necessário forjar as bases modernas no próprio capitalismo local, o que implica em tempo e ações mais incisivas.
Os mais conscientes da gravidade da situação e os limites estruturais para empreender a solução das causas dos problemas tem claro que “os confrontos recentes ocorridos em diversos países por causa da alta nos preços dos alimentos devem prosseguir nos próximos meses, de acordo com especialistas. `Continuaremos a ver este tipo de incidentes, especialmente em centros urbanos, onde a população se vê impossibilitada de comprar a comida que costumava adquirir´, afirmou Gregory Barrow, porta-voz do WFP (Programa Mundial de Alimentos, na sigla em inglês) da ONU. Para ele, `existe uma possibilidade muito real de instabilidade social e essa é uma ameaça que o mundo deve encarar com seriedade`."(7). E as instabilidades sociais atingem graus tão elevados que eliminam as bases de sustentação das próprias elites locais transformando em verdadeiras ordas violentas as multidões em protesto, chegando à barbárie, pois se movem sem um mínimo objetivo estratégico senão o de conseguirem alimentos a qualquer custo.
Pior ainda que as perspectivas não são boas, pois ainda que possa haver queda de preços pela resposta da produção nos próximos anos, há fortes possibilidades de que os mesmos não recuem aos patamares anteriores. A esperança é “os preços dos alimentos comecem a se normalizar em 2009, afirmou Abdul Abbassian, secretário para grãos do FAO (Fundo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). `Temos visto que fazendeiros de vários países estão plantando o que dá mais dinheiro, justamente os itens que estão faltando. Calculamos que isso resulte em uma produção suficiente dentro de uma ou duas temporadas... Se o clima se mantiver em certa normalidade, nossas projeções indicam que os preços devem começar a baixar no próximo ano`”(7). Mais uma vez a resposta capitalista da produção a preços ao ampliar os estoques prognosticam que, superada a fase aguda vivenciada no momento, nas safras dos próximos anos haverá mais alimentos. Mas quem realizará esse incremento de oferta senão as nações que estruturam agropecuárias modernas e que abastecerão essas nações pobres em função das respectivas capacidades de importar produtos, dado que continuaria persistente a letárgica capacidade interna de produção de alimentos.
E mesmo que isso fosse concretizado, dado que os preços internacionais poderão não voltar aos patamares anteriores que eram sustentados naqueles níveis por políticas protecionistas. Nesse quadro de preços internacionais mais elevados, pode produzir uma situação anômala em que os produtores internos tenderiam a exportar e com isso obter preços mais altos que o padrão de renda da grande massa da população interna pode pagar. E os governos se limitarem as exportações por qualquer mecanismo acabam por desestruturar sua capacidade de produção. Por isso é que Abdul Abassian afirma “que o mundo deve se preparar para uma nova realidade. `É importante ter em mente que os preços que os países e os consumidores estavam acostumados eram mantidos artificialmente baixos... Os preços estavam baixos por causa de subsídios dados a fazendeiros, especialmente na Europa. Esperamos que os preços caiam, mas eles não vão voltar a ser o que eram`"(7). Isso implica numa longa espera pela estabilização da situação, exigindo esforços coordenados e conjuntos no sentido de que as distâncias entre as economias mundiais, ao menos na questão alimentar, sejam menores criando uma ponte mais segura entre as mesmas.
O aumento da oferta, previsto pela FAO, deve ainda ajudar a estabilizar os mercados.Entretanto, não há solução à vista para a dependência econômica e de importação de alimentos das nações pobres. Para Abdul Abassian, "um dos problemas é uma certa indecisão de governos que não sabem se compram alimentos agora, porque os preços podem aumentar ou se esperam eles baixarem ...`Calculamos que, além de diminuir, os preços devem flutuar menos´. E embora a crise cause instabilidade em alguns países, outros estão se beneficiando. `O Brasil é um exportador e um dos maiores beneficiados da alta de preços. Os fazendeiros brasileiros de soja, milho e cana-de-açúcar, devem continuar a se beneficiar.`" (7). Desse modo, os grandes produtores de grãos e de açúcar brasileiros estão se beneficiando de uma realidade que leva ao desespero massas humanas que vivem em situação extrema de pobreza. E o Brasil sequer se coloca de forma crítica no concerto das nações, se resumindo a defender seus próprios interesses e a realizar propostas vagas de aumento da produção.
Tanto assim que “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que os recentes aumentos nos preços dos alimentos indicam que é necessário produzir mais em nível mundial, mas que não se pode culpar o investimento nos biocombustíveis pela pressão nos preços... Lula afirmou que o aumento dos preços dos alimentos se dá pelo fato das `pessoas pobres estarem começando a comer`, em lugares como China, Índia e América Latina. No Brasil há produtos como leite e feijão, cujos preços sofreram mais pressões em nível doméstico, mas afirmou que esta é uma questão `fácil de resolver, já que o país tem território suficiente para produzir em maior escala´”(8). Trata-se de uma leitura estreita do problema como se a crise decorresse de limitações de oferta, sem atentar para o enorme gargalo do lado do tamanho e do perfil da demanda. Mais sério consiste em negar o óbvio de que as multidões sublevadas tomaram essa decisão, premidas pelo desespero da luta pela sobrevivência, ou seja, lutam para tentarem começar a comer não tendo renda para acessar gêneros de primeira necessidade.
Esgueirando-se da responsabilidade de enfrentar o debate sobre essa questão crucial para as nações pobres, “o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que acredita que o Brasil poderá se beneficiar da alta mundial de preços de alimentos. Segundo Mantega, a inflação alimentar `tem o lado ruim, de aumento de custo de alimentos, mas o lado bom, que é o do choque de oferta`. De acordo com o ministro, o Brasil se encontra em uma posição privilegiada, porque tem muitas terras agrícolas. `O Brasil pode se beneficiar até da situação, aumentando a oferta, podemos tomar essa questão como um desafio, não como problema, que nos obriga a aumentar rapidamente a oferta de vários produtos agrícolas´"(9). Noutras palavras, a aposta do Governo Brasileiro está em aproveitar a conjuntura favorável para ampliar a produção interna com vistas a ocupar maior parcela do mercado internacional.
Essa postura segue a orientação governamental sobre o assunto, uma vez que “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que é necessário discutir as barreiras comerciais aos biocombustíveis e ressaltou os benefícios do etanol na redução da emissão de gases do efeito estufa. `É preciso discutir as barreiras ao comércio de biocombustíveis que surgem a pretexto de supostos riscos ambientais, sociais e alimentares. Considero esse debate necessário e urgente mas ele precisa ser feito com base em fatos e não em preconceitos`. Lula disse que nos jornais de hoje já tem até charges dizendo que os biocombustíveis estão causando inflação por conta dos alimentos que deixaram de ser plantados. `Isso é uma falácia, uma mentira deslavada de quem não entende ou não quer entender, desabafou Lula, citando que existem mais de 1 bilhão de seres humanos do mundo vivendo abaixo da linha da pobreza e que não conseguem comer as calorias e proteínas necessárias...`É amplamente possível compatibilizar produção de etanol e biodiesel com a produção de alimentos", afirmou o presidente.`Peço a todos vocês que ao analisarem a questão dos biocombustíveis não avaliem a partir da lógica de um país europeu´"(10). Ao mesmo tempo em que nega o impacto da produção de biocombustíveis sobre a produção e os preços dos alimentos, defende maior espaço no mercado pela eliminação das barreiras, citando as cifras da pobreza mundial não propugna por medidas que ataquem a causa do problema vivido pela massa populacional mais pobre do globo.
O Brasil com essas postulações perde a oportunidade de firmar um conceito mundial de que seu programa de biocombustíveis, sendo diferenciado em termos de opção de matéria prima em relação ao europeu e norte-americano, não apresenta os mesmos corolários danosos para os preços dos alimentos que os programas norte-americano e europeu. “O forte aumento da produção de biocombustíveis nos Estados Unidos e na Europa é um fator importante da disparada dos preços dos alimentos no mundo, pressão que é responsável por tumultos no Haiti e na África, considerou presidente do Banco Mundial Robert Zoellick. `Os biocombustíveis são sem dúvida um fator importante" no aumento da demanda em produtos alimentares` e ´está claro que os programas públicos na Europa e nos Estados Unidos acarretaram um aumento da produção de biocombustíveis, o que provocou a intensificação da demanda em produtos alimentares´. O preço do milho, utilizado na produção de álcool, dobrou nos dois últimos anos devido à forte demanda. `É preciso reconhecer que o aumento da demanda em biocombustíveis tem um impacto em todos os preços dos produtos alimentares, e isso representa um grave perigo em algumas partes do mundo, como no Haiti ou na África´, frisou Zoellick, completando que esperava que isso vá estimular os Estados Unidos, os europeus, os japoneses e os outros a trazerem seu apoio para responder a esta situação de emergência´" (11). Interessante que essa consideração precisou ser feita por uma autoridade norte-americana, quando deveria ser uma palavra de ordem da diplomacia econômica nacional.
E as diferenças são fundamentais entre o milho e a cana. Enquanto que o milho corresponde a um produto alimentar fundamental para amplas massas populares, em especial de muitos paises pobres - e para o isso as alternativas de substituição são reduzidas -, da cana se produz açúcar que encontra substituto inclusive porque parcela relevante do açúcar consumido no mundo origina-se da beterraba açucareira e não da cana. Isso sem entrar na minudência dos rendimentos em termos de volume de etanol produzido que na cana se mostra mais elevado por unidade de área que no milho. Na questão do impacto sobre os preços dos alimentos, a produção de etanol de milho como no programa norte-americano implica na retirada de parcelas elevadas de produto do mercado com impactos diretos em toda cadeia de grãos, como a soja, o trigo e mesmo o arroz. No caso da cana não, pois em caso de menor produção de açúcar, não apenas não se trata de um produto alimentar e essencial como os impactos colaterais não atingem outros alimentos.
Essa se constitui na grande vantagem do programa brasileiro de produção de etanol em relação ao seu rival mais direto, o etanol norte-americano. Assim, ao contrário de tentar negar a obviedade de que a produção de etanol a base de milho tem uma relação direta com a explosão dos preços de cereais gerando enorme convulsão social em inúmeros países – que estão dentre os mais pobres – que dependem do milho para alimentação humana, as autoridades brasileiras deveriam incorporar-se às críticas pesadas contra esse efeito perverso da produção de biocombustíveis sobre a produção de alimentos exatamente para demonstrar que na opção brasileira esse problema de colaterais sobre os preços mundiais de alimentos se não são nulos, estão longe de atingirem a mesma dimensão em magnitude e em termos de irradiação dos efeitos, em especial para as economias de países pobres.
Isso porque nem mesmo o Brasil está imune aos impactos da política norte-americana de produção etanol a partir do milho. E os efeitos não são todos benéficos, embora os impactos sobre os preços dos alimentos aqui estão longe de alcançar a dramaticidade vivida dos países cuja alimentação se dá à base de milho e outros cereais. Uma verificação dos resultados das exportações da agricultura brasileira nos últimos dois anos (2006-2007) mostra bem os efeitos no Brasil da política norte-americana de biocombustíveis a base de milho. As vendas externas de derivados da cana e sacarídeas recuaram em US$ 1,20 bilhão quando se compara o ano de 2007 com o de 2006, como resultado da menor geração de divisas com a venda de açúcar (-US$ 1,07 bilhão.) e de álcool (- US$ 124,18 milhões). Em contrapartida, os cereais/leguminosas/oleaginosas tiveram incremento de US$ 3,65 bilhões, como resultado do aumento das exportações de soja (+ US$ 1,59 bilhão.) e do milho (+ US$ 1,45 bilhão). Trata-se de comportamento invertido quando se comparam as mudanças de 2005 para 2006, com 2006 para 2007, o que acaba expressando situações regionais diferenciadas, face à especialização produtiva (12).
O Brasil antes nunca tinha sido exportador relevante de milho, e passou a ser como resultante o do impacto da produção dos biocombustíveis sobre a produção e os preços dos alimentos, uma vez que maiores preços internacionais de milho desde logo torna mais cara a comida de populações que têm dieta à base de milho como na América Central e, também impacta a produção brasileira, em especial de feijão, uma vez que não apenas o milho corresponde à segunda cultura da maioria dos produtores de feijão como também, nesses mesmos espaços, a soja é uma lavoura concorrente por terra. Em poucas palavras, no tocante aos biocombustíveis, se configura um exagero prognosticar a falta de alimentos em função da expansão canavieira, conforma-se como uma constatação que a política norte-americana de produção de etanol a partir de milho, num primeiro momento, já impactou negativamente a produção de alimentos e os tornou mais caros. A diferença de dramaticidade consiste que a alimentação do brasileiro não tem a mesma dependência do feijão, tendo outras opções de proteína barata.
Mas o Brasil também não ficou imune à influência direta dos movimentos de elevação de preços internacionais. Um dos fatos consiste em que “o uso de óleos vegetais como alternativa ao petróleo modificou o mercado internacional de oleaginosas, que passou a incorporar um importante segmento da economia mundial: o energético. Nesse sentido, o crescimento da demanda por óleos vegetais para fins carburantes acirrou a competição entre potenciais exportadores (como Brasil, Argentina, Estados Unidos, Malásia e Indonésia), contribuiu para a redução no nível de estoques e para a menor disponibilidade de óleos vegetais, bem como para a sustentação da alta nos preços..Os óleos vegetais, além de consumidos diretamente na alimentação, constituem-se em importante matéria-prima para a formulação de biodiesel e de alimentos. Portanto, a alta de preços no mercado internacional põe em risco não só a sustentabilidade dos programas energéticos como também a segurança alimentar dos países pobres (importadores de alimentos)” (13).
Os preços agropecuários em geral sofreram elevações no mercado brasileiro no anos de 2007 e nem todos os aumentos decorrem de quebras de safras. Para isso basta verificar “os índices de preços recebidos pelos agricultores no Estado de São Paulo, no período de dezembro de 2006 a dezembro de 2007, evoluíram em patamares superiores ao da inflação, com o IqPR aumentando 9,15% para um IPCA de 4,46% no mesmo período. Isso porque o IqPR-V (vegetais) mostra queda de 5,43% em razão do comportamento dos preços da cana-açúcar que estiveram baixos em 2007. Sem considerar a cana, o IqPR- V (Sem Cana) mostra expressiva alta de 29,83¨%. Os IqPR-A (animais) aumentaram 43,30% em 2007 com o que o IqPR (Sem Cana) mostra alta de 37,58%, pressionando a inflação para cima. Durante 2007, os preços dos produtos que acumularam altas em dezembro quando comparados com o mesmo mês de 2006 foram: feijão (+241,56), batata (+215,63), banana nanica (+95,50), carne suína (+49,74), amendoim (+47,77), milho (+44,18), carne de frango (+42,86), leite C(+42,17), soja (+39,05), carne bovina (+37,75), ovos (+35,79), leite B (+34,07), laranja de mesa (+19,52), trigo (+13,68), todos maiores que o IPCA(+4,46). De outro lado, apresentaram queda os preços de tomate de mesa (-49,97), cana-de-açúcar (-32,45), algodão (-11,70), café (-9,75), arroz (-4,66), e laranja p/ industria (-0,43)” (14).
Todos os preços associados à política norte-americana de biocombustíveis mostraram elevações expressivas como o milho e a soja. E também o preço do feijão, um alimento básico no Brasil e em cujas áreas de produção do Sudeste também se planta soja e milho, apresentou a maior variação acumulada. As carnes, o leite e o ovo, fontes de proteína animal e em cuja oferta a ração de soja e milho são insumos relevantes registraram altas significativas. Noutras palavras, conquanto em muitos casos possa ter havido problemas climáticos, num ano em que o Brasil registrou mais uma safra recorde de grãos e fibras, os preços internos de importantes produtos alimentares se elevaram. E como a imensa maioria deles não tem qualquer relação com a expansão da agroindústria canavieira cujos preços inclusive caíram, aí está a face do efeito reverso da política norte-americana de biocombustíveis que afetaram sim a agropecuária brasileira. A diferença em ter o Brasil e os países convulsionados, é que aqui a renda média se elevou e a dependência da importação de alimentos não se mostra relevante, a não ser no caso do trigo. E aqui também há uma rede de programas sociais mais consistentes. E por incrível que pareça também neste ponto o Governo Federal perde a oportunidade de mostrar talvez um dos aspectos mais relevantes de sua ação eficiente no sentido de combater a pobreza e a miséria.

NOTAS

(1) Ver a matéria “Crise não tem solução definida ainda”, obtida em http://www.estadao.com.br/ economia, em 12/04/2008.
(2)Ver a matéria “Milhares vão às ruas do Haiti contra preços de alimentos; cinco morrem”, obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro em 12//04/2008.
(3) Ver a matéria “Presidente do Haiti diz que reduzirá preços em meio a crise e saques” da Folha Online, obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro em 12//04/2008.
(4)Ver a matéria “Cresce preocupação nos países ricos com revoltas motivadas pela fome” da France Presse obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro, em12//04/2008.
(5)Ver a matéria de CHADE, Jamil. “Inflação de alimentos para países mais pobres deve piorar”, de O Estado de São Paulo obtida em http://www.estadao.com.br/economia em 12/04/2008.
(6)Ver a matéria “Crise não tem solução definida ainda”, obtida em http://www.estadao.com.br /economia em 12/04/2008.
(7)Ver a matéria de COELHO, Rodrigo Durão, “Alta dos alimentos ameaça estabilidade global, diz ONU” da BBC Brasil obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro, em12//04/2008.
(8)Ver a matéria “Lula pede aumento da produção de alimentos para conter onda de inflação” da Efe obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro, em12//04/2008.
(9)Ver a matéria “Inflação de alimentos pode beneficiar Brasil, diz Mantega”da BBC Brasil obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro, em12//04/2008.
(10)Ver a matéria de MONTEIRO, Tânia. “Debate sobre biocombustível deve ser feito com fatos, diz Lula”, de O Estado de São Paulo obtida em http://www.estadao.com.br/economia em 12/04/2008.
(11)Ver a matéria “Biocombustíveis são responsáveis por disparada dos preços alimentares, diz Bird” da France Presse obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro, em12//04/2008.
(12)Ver GONÇALVES, José S.& VICENTE, José R.; SOUZA, Sueli Alves Moreira Balança comercial dos agronegócios paulista e brasileiro no ano de 2007. IEA- APTA, São Paulo, janeiro de 2008. (publicado na Homepage http//www.iea.sp. gov.br).
(13)Ver o artigo de BARBOSA, Marisa Zeferino; NOGUEIRA JUNIOR, Sebastião & FREITAS, Silene Maria de. Agricultura de Alimentos X de Energia: impacto nas cotações internacionais. Disponível em http://www.iea.sp.gov.br, acesso realizado em 12/04/2008.
(14)Ver o artigo de PINATTI, Eder et al Comportamento do índice quadrissemanal de preços recebidos pela agropecuária paulista (IqPR) durante o ano de 2007. IEA-APTA. São Paulo. 2008. mimeo.
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Autores:

José Sidnei Gonçalves, Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (e-mail: sydy@iea.sp.gov.br)

Sueli Alves Moreira Souza, Economista, Pesquisadora Científica do IEA/APTA (e-mail:sueli@iea.sp.gov.br).


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