Mercado
Cana, pecuária, alimentos e desmatamento amazônico
São Paulo, 10 de julho de 2008    
O presente ensaio quer realizar uma reflexão sobre os impactos das decisões sobre biocombustíveis sobre a produção e os preços dos alimentos, mas realizando tal abordagem numa perspectiva histórica, tomando fatos históricos que no passado produziram a construção do presente, no intuito de, no momento atual, ajudar a construir o futuro. Num tema tão candente não tem, por óbvio, a pretensão nem de ser definitivo ou exaustivo, pois se reconhece que nada é mais transitório que o saber científico – e ainda bem que é assim senão seria realmente o fim da história-. Quer apenas ao abordar o tema, faze-lo numa perspectiva heterodoxa em relação ao debate em curso no momento.
Não há mais economia autárquica alguma no planeta terra em que uma realidade, por uma ou por uma imensa quantidade de razões, esteja imune ao que ocorre em espaços econômicos, por mais longínquos que sejam. Não apenas a internet está plugada numa comunidade mundial, os mercados também estão. Mas, as leituras simplificadoras de muitas análises econômicas não levam isso em conta. Exemplo disso está na tentativa de escoimar o fato de que a expansão dos canaviais acaba por levar ao acirramento do desmatamento amazônico.
Não basta como resposta destacar o absurdo agronômico que configuraria o plantio de cana nas faixas equatoriais. A utilização desse argumento ahistórico significa ignorar o próprio desenvolvimento e alguns dos maiores sucessos históricos da agropecuária nacional em função da qualidade da pesquisa pública nacional. Em 1950, numa discussão de similar conteúdo, mas envolvendo a soja, os agrônomos estariam pontuando que seria um absurdo e impraticável o plantio bem sucedido dessa leguminosa em qualquer faixa acima do Trópico de Capricórnio.
Em 1960, o mais brilhante dos economistas agrícolas brasileiros, e pioneiro dessa ciência no Brasil, o engenheiro agrônomo Ruy Muller Paiva, colocava que o retorno da agricultura paulista para as zonas velhas era um fator imprescindível para o desenvolvimento econômico do País. Em grandes linhas o que esse pensador clássico da agricultura pontuava era que não havia possibilidades de expansão setorial dado o esgotamento da fronteira, e colocava dentre os espaços não agricultáveis simplesmente as amplas formações dos cerrados (1)..
Não é preciso mais nada para mostrar a fragilidade do argumento corrente, de que a expansão canavieira não afetaria a Floresta Amazônica em função de que nesse espaço seria um absurdo produzir cana. A soja que nos anos 1950 era restrita às áreas próximas ao Chui atualmente expande-se de forma vertiginosa em direção e em zonas quase lindeiras ao Oiapoque. E os cerrados, até então “desertos inabitáveis da América” para usar uma expressão inglesa no século XIX em relação ao meio oeste norte-americano, esses espaços territoriais, tal como lá também cá, se converteram nos maiores celeiros de grãos e fibras do mundo.
O padrão agrário das lavouras mecanizadas e insumo-intensivas ainda mostra fôlego na sua expansão territorial. A questão da discussão da sustentabilidade é relevante para o futuro dado que o fato é que a soja virou tropical e parcela preponderante da comida e do vestuário usam matérias primas produzidas nos cerrados.
Falta associar a expansão canavieira com o desmatamento amazônico. Ora basta pensar que a cana expande-se nas terras paulistas substituindo principalmente pastagens. Em 1969-1971, a área estadual de pastagens evoluiu de 11,9 milhões de hectares para 10,0 milhões de hectares em 2004-2006. Isso significa a perda de 1,9 milhões de hectares pela pecuária. Já as superfícies de lavouras aumentaram 5,6 milhões de hectares para 7,3 milhões de hectares, adicionando 2,7 milhões de hectares. Dentre as lavouras, a cana para indústria cresceu de 0,7 milhão de hectares para 3,8 milhões de hectares (2)..
Fica nítido que a expansão das lavouras paulistas foi 0,8 milhão de hectares superiores ao recuo das pastagens. Isso se deve a duas razões: a primeira consiste no fato de que houve alteração na composição das lavouras, uma vez que notadamente aquelas plantadas nas áreas de renovação de pastos perdem expressão e a segunda consiste no aumento da complementaridade de safras, com o que se têm duas áreas cultivadas com lavouras na mesma gleba colhendo mais de uma vez na mesma faixa de terra no mesmo ano. No primeiro caso um problema, no segundo caso um avanço.
Mais ainda há que se mensurar o impacto da expansão canavieira, uma vez que avançou 3,1 milhões de hectares o que significa 0,4 milhão de hectares mais que lavouras e 1,2 milhão de hectares mais que pastagens. Portanto, não há como negar que a expansão canavieira não se deu somente nas áreas de pastagens, ainda que principalmente sobre áreas de pastagens. E as pastagens embora reduzidas, suportam rebanho expressivamente maiores dado que ao invés dos 8,0 milhões de cabeças de bovídeos (bovinos mais bubalinos) do início da década de 1970, têm-se atualmente algo em torno de 14,0 milhões de cabeças (3).
Verifica-se aí um brutal crescimento da produtividade das pastagens gerando maior suporte na medida em que a braquiaria – a despeito de ter sido gramínea quase ignorada pela agrostologia nacional – dominou os campos tornando a espécie vegetal mais cultivada da agropecuária paulista com mais de 8,0 milhões de hectares – essa primazia não é da cana como pensam, de forma equivocada, muitos analistas.
Mas não é só o aumento da capacidade de suporte das pastagens que ocorreu na pecuária paulista. Houve uma significativa especialização nos rebanhos de corte nas fases finais do ciclo de produção. A criação bovina divide-se essencialmente na maioria das propriedades em 3 fases: a cria, a recria e a terminação (engorda) (4).
Numa visão do amplo circuito pecuário de corte brasileiro, a cria se dá em espaços longe de São Paulo, parte da recria se dá nesses espaços, mas principalmente nas zonas intermediárias em termos de distancias dos centros de consumo e de exportação do Sudeste e a terminação - engorda a pasto e notadamente os confinamentos – mais próximos das grandes regiões metropolitanas do sudeste brasileiro.
E se não ocorre essa migração bovídea onde o boi, que foi expulso das terras paulistas, vai reproduzir-se nas terras antes ocupadas com florestas para que seus filhos morram em São Paulo, mesmo depois de mortos eles cumprem esse desígnio dado que quase a totalidade das exportações de carne processada parte de agroindústrias paulistas e o embarque de quase toda carne bovina brasileira não processada se dá pelo porto de Santos (5).
Ainda que com a busca da precocidade na idade ideal de abate que avançou de forma expressiva na pecuária, a pecuária bovina de cria – depois parte da recria e mesmo da engorda -, migrou para zonas de terras mais baratas que a paulista, ou seja, principalmente para as áreas de abertura da fronteira de expansão agropecuária que adentram na floresta amazônica, saltando os cerrados que nunca foram espaços de pecuária de alto desempenho.
Pois bem, aí está o impacto da expansão da cana, medido em desmatamento amazônico, uma vez que a característica itinerante da agropecuária brasileira faz que nos diversos tempos históricos se reproduza – como farsa ou como tragédia como são as buscas de repetições na história - num contínuo e perene processo de acumulação primitiva ainda que pretérito, onde a acumulação de capital oriunda de pilhagem natural para acumulação patrimonial ainda move pioneiros na busca de novos eldorados. Para tal nem as fronteiras nacionais se configuram como limites dados os fatos de que agropecuaristas brasileiros migraram para terras argentinas, paraguaias e bolivianas.
As políticas públicas federais, ao chancelarem essa pretérita acumulação primitiva – que desde Cabral inicia-se com a retirada da madeira que paga o responsável pela abertura da fazenda, passa para o pecuarista com suas criações extensivas e por vezes chega ao lavrador com suas grandes áreas de lavouras - com investimentos em infra-estrutura que incorporam esses espaços de fronteira à economia nacional na mesma medida em que provocam fantásticos ganhos em termos de renda fundiária. Assim, se a cana expulsa o boi, o “boi come floresta” (6), o que se mostra funcional com o mote patrimonial que move as aberturas de fronteira.
Pois bem, os impactos da expansão canavieira paulista sobre as pastagens não podem ser mensurados apenas - ainda que seja muito relevante faze-lo – pelo número frio de hectares que apenas trocaram uma gramínea por outra. Essa consiste apenas na aparência cuja essência deva ser explicada para dar sustentação científica aa análise, sem o que a ciência seria irrelevante. A pergunta que a ciência séria deva fazer é: se houve diminuição da área de pasto e continua a produzir carne e até exportar, de onde vem toda essa carne? De algum outro lugar, no caso da produção em área desmatada da Floresta Amazônica.
Essa leitura dos reflexos em cadeia num espaço territorial mais amplo não tem sido uma prática comum nas análises econômicas da agricultura que quase sempre se esgotam numa econometria que ajustando alguns poucos dados simplificadores da realidade – e isso em si é relevante - comete o pecado estatístico de não realizar uma inferência consistente dos resultados obtidos inserindo-os na totalidade dos movimentos econômicos que movem a história.
Essa mesma preocupação deve ser feita na própria interpretação adequada dos movimentos mais antigos de expansão brasileira da produção de biocombustíveis, no caso com a implementação dos do Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL) nos anos 1970. Se verdade consiste que os impactos da expansão canavieira na época sobre alimentos foram superados e praticamente deixaram de ser destacados durante o período de quinze anos decorridos desde o inicio da década de 1990, isso não tira a consistência de excepcionais trabalhos que, quase no turbilhão dos acontecimentos mostraram de forma objetiva de que a expansão da cana nas terras paulistas nos anos 1970 substituíram lavouras alimentares(7).
Mesmo em nome da realidade da ampla oferta de alimentos, vivida nos anos recentes, mesmo com a expressiva expansão da cana paulista, não faz qualquer sentido ignorar a relevância desses estudos que à época mostraram os impactos negativos sobre a produção de alimentos. Afinal, para quem acredita que o futuro se constrói no presente como os não historicistas de formação dialética, é essencial ter-se nítido o fato de que numa economia nacional à época menos integrada nos variados espaços regionais, houve impactos sobre os alimentos o que gerou toda uma historia de movimentos contra carestia nos anos 1980 que não podem ser simplesmente “varridos para baixo do tapete histórico”.
Por certo a sociedades só se fazem as perguntas para as quais já produziu as condições de resposta, mas essa questão da carestia dos alimentos dominou o debate político dos anos 1980, sendo por muitos anos a essência dos movimentos sociais que proliferaram por todos os cantos do Brasil. E eles foram fundamentais para as transformações econômicas e sociais que vieram a criar as condições de sua superação.
Mas muitos passaram fome e mesmo pereceram sob o impacto das mudanças na composição de culturas com a cana substituindo outras lavouras nos anos 1970. Ter em conta isso se configura como importante até mesmo para poder afirmar de forma peremptória que essa história não está hoje se repetindo, e que isso na agricultura paulista atual corresponde à farsa e não anuncia uma tragédia.
Afinal, não foram nos primeiros anos da década de 1980 que os debates da economia para agricultura se deram em torno da dicotomia entre prioridades para exportáveis (e energia) e domésticos, dados os distintos espaços em que eram realizados os processos de formação de preços (8). E esses estudos foram equívocados ou irrelevantes, dada a realidade atual de abastança alimentar? De forma alguma, exatamente esses trabalhos conduziram a medidas que geraram processos que encaminharam soluções.
Isso se deu por migração de lavouras para outras regiões em movimentos de especialização regional típicos do moderno padrão agrário, com notáveis ganhos de produtividade, mas numa realidade que importantes lavouras mantiveram ou expandiram suas áreas nas terras paulistas. Dentre as principais lavouras afetadas, destinadas à produção para alimentação e/ou vestuário, têm-se:
a)o feijão num primeiro movimento concentrou-se no Sudoeste Paulista em bases modernas, donde continuou um processo de avanço com a estruturação de safras complementares em regiões especializadas que não apenas produziram notável redução da sazonalidade como a redução dos preços pagos pelos consumidores. A inovação tecnológica representada pela criação do cultivar IAC Carioca no final dos anos 1960, superou as limitações da doença representada pelo mosaico comum, permitindo elevação substancial da produtividade. Veja que a dona de casa tem por hábito, na presença de feijão novo, rejeitar o feijão velho, tornando inviáveis soluções via armazenamento na safra para abastecer na entressafra. Com as transformações produzidas, salvo nesta crise de preços recente que será abordada mais à frente pela sua peculiaridade, o consumidor passou a ter feijão novo e barato o ano todo(10).
b)o arroz de sequeiro que era produzido nas áreas de renovação das pastagens, com a substituição dessas pela cana, num primeiro momento viveu de um curto ciclo arrozeiro do Brasil Central, até consolidar-se nas lavouras irrigadas gaúchas, também num bem sucedido processo de especialização regional. Também aqui uma peculiaridade da preferência dos consumidores brasileiros conduziu à solução específica do ponto de vista técnico. O brasileiro prefere o arroz tipo 1 - logo fino, o arroz agulhinha, que só pode ser obtido com elevada produtividade em condições de cultivos irrigados. Ora, os arrozais das áreas de renovação de pastagens eram cultivados em sistema de sequeiro, produzindo o grão tipo arroz cateto, que não era apreciado pelos consumidores. Assim, tal como no feijão, houve um avanço na qualidade do produto no sentido de atender às exigências dos consumidores(11).
c)O algodão, que representa a principal matéria prima têxtil, até o final dos anos 1960 era das mais modernas lavouras e padrão de modernidade tecnológica a partir da base técnica criada e implantada em São Paulo. Nos anos 1970 os algodoais paranaenses assumem a liderança dentro da denominada produção meridional que se matem até o final dos anos 1980. No inicio dos anos 1990 um surto de importações destrói as bases institucionais da cotonicultura meridional –baseada nas pequenas lavouras com colheita manual -, abrindo espaço para que no final dos mesmos anos 1990 inicia-se a expansão das mega-lavouras mecanizadas do plantio à colheita. Conquanto os problemas de exclusão produtiva sejam expressivos e ainda latentes nas antigas zonas de algodoais, não há qualquer limitação de oferta nacional para o abastecimento das agroindústrias têxteis. Quanto ao aspecto alimentação da antiga cotonicultura, o óleo de algodão foi substituído pelo óleo de amendoim(12). Dessa maneira, as áreas de algodão que foram substituídas pela expansão da cana não tiveram, no médio prazo, impactos relevantes para o abastecimento nacional. Elas foram mesmo pouco expressivas se cotejadas com a retração da área paulista de algodão em função da migração, primeiro para o território paranaense, depois para os algodoais dos cerrados.
d)O amendoim, outra lavoura da área de renovação de pastagens tinha uma área cultivada de 474,1 mil hectares no triênio 1969-1971 que se reduziu para 199,9 mil hectares em 1979-1981 e para 70,6 mil hectares em 1989-1991. Ainda que tenha sofrido efeito do impacto do primeiro movimento de expansão canavieira, o mesmo não foi tão relevante, porque o principal problema enfrentado por essa lavoura, que destinada à produção de óleo vegetal - o mais consumido até os anos 1970 – consiste na expansão da soja cujo elevado incremento da produção para farelo – a commodity mais importante - que levou à explosão da oferta de óleo vegetal mais barato e abundante que dominou toda estrutura de consumo alimentar nos anos 1970 em diante. Desse modo foi a soja e não a cana que levou à derrocada da produção paulista de amendoim. Ao contrário, nos anos 1990 em diante surge o amendoim – que expande a área cultivada para atingir 80,2 mil hectares em 2004-2006, agora como lavoura complementar ocupando áreas de renovação de canaviais - trata-se agora de outro amendoim com características rasteiras e que se destina à confeitaria e à exportação-(13).
e)A soja, que durante muitos anos teve alguma expressão em terras paulistas, passa por um processo de desconcentração produtiva por “transbordamento” com a expansão nas terras paranaenses e mais tarde, após o domínio do sul brasileiro até ao anos 1990, a hegemonia nacional passa a se dar nas lavouras dos cerrados com padrões tecnológicos comparáveis e mesmo superiores aos verificados nas lavouras norte-americanas dessa leguminosa. A soja, conquanto da ótica do principal produto seja uma lavoura de exportação dada a expressão das vendas externas brasileiras de soja em grão, além de ser componente essencial da ração para os complexos granjeiros – produtores principalmente de carne de frango, de carne suína, de ovos e em alguns casos de leite-, revela-se um relevante produto alimentar em função de ser o óleo mais consumido e de uma imensa gama de produtos à base de soja. Também aqui não se verifica impacto negativo da expansão canavieira paulista, pois a área estadual de soja que era de 67,3 mil hectares no triênio 1969-1971, atinge 552,1 mil hectares em 1979-1981, patamar que se mantêm até 1999-2001, quando volta a aumentar para atingir 766,5 mil hectares em 2004-2006(13).
f)O milho, outra lavoura relevante notadamente para a agroindústria de rações –em combinação com a soja - com alguma utilização na alimentação humana de forma direta, sofre recuo na década de 1970 quando passa de 1,5 milhão de hectares para 1,1milhão de hectares, patamar em torno do qual tem se mantido em todo período até o triênio 2004-2006. No caso do milho ocorre de modo similar ao da soja um avanço noutras unidades da federação brasileira num processo de transbordamento dos limites da agropecuária paulista que tem sua fronteira de expansão territorial esgotada já nos primórdios dos anos 1970. A grande mudança nessa lavoura – no caso brasileiro atividade estratégica para os complexos de granjeiros produtores de proteína animal e menos “alimentar” que a soja – consiste em que progressivamente se firma como cultivo principal e não mais secundário dentro das propriedades rurais(13).
g)Finalmente tem-se o trigo, cultura alimentar cujas tentativas de auto-suficiência falharam tanto na agropecuária paulista como a brasileira. Em 1969-1971 eram plantados 19,7 mil hectares de trigo em São Paulo, nível que evoluiu para 170,1 mil hectares em 1979-1981 e praticamente se manteve em 1989-1991 com 166,0 mil hectares. Esse incremente teve duas sustentações, sendo uma delas a complementaridade gramínea de inverno com leguminosa no verão, no denominado binômio trigo-soja, e a principal que corresponde ás políticas ativas de substituição de importações de trigo das décadas de 1970 e de 1980, que foram desmontadas na década de 1990 com a abertura do mercado brasileiro e a integração no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) abrindo espaço para o trigo argentino mais competitivo. Tanto assim que, em 1999-2001 a área paulista de trigo atingiu meros 22,1 mil hectares, a qual recupera alcançando 52,5 mil hectares no triênio 2004-2006 face os preços internacionais mais elevados que repuseram as condições de competitividade do trigo nacional. De qualquer maneira, não há qualquer relação entre a expansão canavieira e a retração da lavoura tritícola que ocupam regiões distintas(13).
Em linhas gerais, quando se observa o desempenho da agropecuária paulista num prazo mais largo, num horizonte de 35 anos, conquanto a expansão canavieira seja um fenômeno expressivo em todas as décadas desde 1970 - tendo avançado 612,6 mil hectares nos anos 1970, 767,9 mil hectares nos anos 1980, 746,1 mil hectares nos anos 1990 e 917,9 mil hectares nos primeiro qüinqüênio do século XXI-, numa leitura de médio e longo prazo, não houve impactos decisivos na produção de alimentos e vestuário (13) dado o ajuste da oferta seja: a) pela especialização regional dentro do próprio território paulista; b) pela migração da base produtiva para outras unidades da federação e, c) pela substituição do produto enquanto matéria prima para alimentação popular como nos casos dos óleos vegetais de amendoim e de algodão pelo óleo de soja.
Entretanto, nada autoriza afirmar que essa leitura de longo prazo torne inválidas as análises que mostram o impacto conjuntural imediato da expansão da cana sobre lavouras alimentares na época do apogeu do PROÁLCOOL(14), nem que isso não tenha acirrado a carestia de alimentos nos anos 1980, quando ainda que tenha praticamente se esgotado a opção brasileira pelo álcool combustível – abandonada pelas políticas públicas até a entrada dos anos 2000 com o surgimento dos carros bicombustíveis -, os preços internacionais do açúcar sustentaram o dinamismo dessa lavoura. A temporalidade dos impactos se mostra essencial para uma imensa parcela da população cuja demanda imediata para sobreviver e obter alguma qualidade de vida depende de alimentos acessíveis em quantidade e qualidade. O amanhã pode ser tarde para essa gente cuja necessidade dá-se no agora dado que, no longo prazo, como já profetizou o grande economista do século XX, o inglês John Maynard Keynes, “estaremos todos mortos”.
Essa experiência histórica deve ser apreendida e entendida para que, inclusive, seja defendida com consistência a opção brasileira pelo álcool de cana no seu momento atual. E também para que sejam tomadas medidas que regulem a ocupação do espaço para que o efeito colateral da expansão canavieira sobre pastagens e sobre outras lavouras - em áreas de renovação ou não -, acabe por impelir a ocupação de terras atualmente cobertas com florestas. Há que se pensar o Brasil como um todo e não com mero viés canavieiro (14). Mesmo porque, a questão da segurança alimentar no Brasil vem sendo objeto de ações decisivas apenas desde o passado muito recente, o que acabou por reduzir as disparidades sociais com base em políticas sociais ativas.
As soluções para os impactos colaterais da expansão canavieira exigem a reengenharia do aparelho estatal tornando apto a produzir e aplicar normas regulatórias mais consistentes com a coibição desses efeitos ambientais e sociais predatórios. Mesmo porque, nas condições em que se deu o avanço de quase 1,0 milhão de canaviais na agropecuária paulista nos primeiros cinco anos deste século XXI, em nada autoriza conclusões de que isso tenha tido efeito sobre a produção de alimentos, cuja zona de produção não são nem estão na trajetória na qual a cana avança no sentido oeste numa direção lindeira ao curso seguido pelo Rio Tietê. Talvez a quase despercebida expansão das lavouras florestais - pinnus e eucaliptus para celulose, papel e móveis - no sudoeste paulista, dentre os movimentos internos de mudança na composição de culturas, tenha produzido impactos mais relevantes (15). Em síntese, se os preços dos alimentos estão aumentando em escala mundial com a opção recente pelos biocombustíveis, esse fato tem pouco a ver com o atual movimento de expansão canavieira paulista que nem substitui lavouras alimentares nem as desloca por efeito indireto de suas regiões de produção.
O debate sobre os impactos da expansão dos biocombustíveis em escala global sobre a composição das atividades agropecuárias nem sempre tem sido realizado considerando a irradiação dos desdobramentos da expansão de uma dada lavoura num espaço territorial mais amplo. De outro lado não têm sido operacionalizado tendo em conta o fato de que, já tendo vivido nos anos 1970 em diante um primeiro movimento de uso do álcool como combustível acelerando a expansão canavieira, há efeitos de curto prazo que caminham num sentido de dramaticidade em termos de carestia de alimentos até que ajustes de prazo mais largo acabem por superar esse problema. Também não tem sido o suficiente profundo para diferenciar, na realidade atual, as diferenças relevantes de corolários na oferta de alimentos, da opção norte-americana pelo etanol de milho e da brasileira de fazê-lo a partir da cana para indústria.
Desde logo, nos anos 1970 quando o Brasil viveu o momento de implementação do Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL) a expansão das lavouras de cana produziu a substituição de lavouras alimentares. Os movimentos de carestia dos anos 1980 e o intenso debate econômico sobre a agricultura contrapondo o maior dinamismo das lavouras de exportação – cujos preços se formam no mercado internacional - e as de consumo interno –preços formados no mercado brasileiro-, não representaram simples exercícios de retórica e/ou de interesse meramente acadêmico. A carestia e a dicotomia entre produtos representaram elementos determinantes para entender uma quadra dramática da história econômica nacional representada pelos anos 1980, a denominada década perdida, pelas taxas muito baixas de crescimento econômico face ao padrão histórico.
O fato empírico inegável quando se analisa a agropecuária paulista consiste na constatação de que a cana para indústria ganha área em todas as décadas desde os anos 1970 e ocorreu sempre também em todo período a diminuição da área de pastagens. Muito se tem dito de que a expansão canavieira não teria impacto em termos de ocupação espaços da Floresta Amazônica e que, portanto seria um absurdo fazer a associação entre o aumento da produção de biocombustíveis e o desmatamento amazônico. Mas isso consiste numa leitura no mínimo simplória do processo. Afinal se é verdade que o Brasil poderia dobrar a área de lavouras e com isso de cana sem derrubar mais uma árvore sequer, também se constitui em constatação inegável que o incremento da área de cana paulista em qualquer ritmo, ao substituir pastagens, dentro do ajuste do circuito pecuário, empurra o “boi para comer floresta”.
Não em razão direta derivada da maior superfície plantada de cana, uma vez que a pecuária de corte tem amplo espaço para elevar a produção intensificando a lotação das pastagens já existentes. Mas dada a situação institucional e política brasileira vigente não é isso que ocorre na realidade, uma vez que há incursões de ampliação da área ocupada com agropecuária movidas por um pretérito processo de acumulação primitiva, chancelado pelas políticas públicas tanto de financiamento de investimento como de inversões na construção de infra-estrutura, iniciado pelas madeireiras, continuado pelos “pioneiros” abridores de fazenda, aprofundado por pecuaristas e consolidado por lavradores. Desse modo, uma visão integrada da agricultura brasileira permite caracterizar uma série de nuances como elementos de uma essência perversa que se esconde por trás da aparência inofensiva da ampliação da territorialidade canavieira.
Mas há que se entender que, passados os momentos dramáticos de carestia dos anos 1980, processos intensos de ajustes se deram nas agropecuárias paulista e brasileira, que conduziram à superação dos efeitos deletérios do maior plantio de cana substituindo lavouras alimentares. Desde então, e principalmente nos anos 1990 em diante, ocorreram expressivas transformações estruturais nas agropecuárias tanto de São Paulo como do Brasil, com o que a oferta de alimentos abundante e a elevada capacidade de resposta à ocorrência de escassez conjuntural, eliminaram os problemas de carestia vividos anos 1980. Também da segunda metade dos anos 1990 em diante, ao mesmo tempo em que o sucesso do Plano de Estabilização Econômica controlava a inflação que penaliza mais os mais pobres, o Governo Federal ensejou a realização de programas sociais visando distribuição de renda que retirou enormes massas humanas da realidade de pobreza, inserindo-os como consumidores no mercado.
Dessa maneira, ainda que tenha ocorrido expansão vertiginosa da cana no território paulista no primeiro qüinqüênio do século XXI, nada autoriza associar tal movimento canavieiro à redução da área e/ou da produção de alimentos. Até porque da ótica geográfica, nos caminhos da cana não estão instaladas lavouras alimentares. Entretanto se isso é valido para a opção brasileira de biocombustíveis, não se pode afirmar o mesmo do programa norte-americano de produção de etanol de milho. Primeiro que os produtos da cana não são alimentos essenciais e no caso do milho isso ocorre em muitas nações, notadamente nas mais pobres que importam alimentos. Como volumes significativos de milho são destinados à produção de etanol e parcela da soja para produzir biodiesel, os preços internacionais dos grãos alimentares elevaram-se em percentuais expressivos, gerando carestia e miséria em muitas nações como o Haiti.
Entretanto, ao invés de disseminar essa leitura favorável ao programa brasileiro de etanol de cana em relação ao norte-americano de etanol de milho, de forma equivocada o Governo Brasileiro assumiu nos fóruns internacionais, a posição de negar o óbvio dadas as rebeliões populares que pululam em diversas nações. E não há como negar que os preços internacionais afetaram os preços dos alimentos também aqui no Brasil. A diferença consiste em que nos últimos anos as taxas de crescimento econômico nacional têm sido consistentes e, com isso, reduz o desemprego e eleva-se o salário médio alterando o tamanho e o perfil da demanda, E como as referidas altas dos preços internacionais, estão associados às políticas de bio-energia da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos da América, têm-se na verdade o efeito reverso, pois se a cana plantada no Brasil não impacta os preços dos alimentos nos mercados interno e externos, o milho norte-americano utilizado para produção de etanol promove preços mais elevados de produtos essenciais, inclusive no mercado brasileiro.

NOTAS

(1)Ver PAIVA, Ruy M. Retorno da agricultura de São Paulo para as zonas velhas: fator imprescindível para o desenvolvimento econômico do país. Agricultura em São Paulo 7(9):1-2, 1960.
(2)Ver GONÇALVES, José S. & SOUZA, Sueli Alves Moreira Agropecuária paulista: especialização regional e mudanças na composição de culturas de 1969-1971 a 2002-2006. IEA-APTA, São Paulo. 2008.mimeo.
(3)Ver Ana Maria Pereira AMARAL, Ana Pereira, GHOBRIL, Carlos Nabil & COELHO, Paulo José Produção Animal: Previsão No Estado De São Paulo Para 2006. IEA- APTA. São Paulo, setembro de 2006. (publicado na Homepage http//www.iea.sp.gov.br).
(4)Ver essa especialização em GONÇALVES, José S.& MACHADO, Rafael Silva. Pecuária paulista tende a se concentrar ainda mais. Portal DBO. São Paulo. Fevereiro de 2007.
(5)Sobre a importância paulista no complexo carnes ver - GONÇALVES, José S. & GHOBRIL, Carlos N. Febre aftosa em estados vizinhos: sp perde nas exportações por falha alheia. IEA- APTA. São Paulo, março de 2007. (publicado na Homepage http//www.iea.sp.gov.br).
(6)A frase “boi que come floresta” é uma alusão à máxima cunhada por Thomaz More que, ao referir-se à expansão desenfreada da criação de ovelhas no sudoeste da Inglaterra no primeiro movimento da 1ª Revolução Industrial, dada a intensa e sangrenta expropriação do campesinato pelas grandes criações de ovelhas para produção de lã, configurou-a como um processo onde “ovelhas devoram gente”. Ver MORE, Thomas. A Utopia, Abril Cultural, São Paulo, 1979, p. 159-314. (Os Pensadores). (1ª Edição 1508). É o mesmo processo magnificamente analisado e denominado de “ a assim chamada acumulação primitiva” por MARX, Karl. O Capital Vol. I - Livro Primeiro. Abril Cultural, São Paulo, 1983, 301p. (Os Economistas). (1ª Edição 1864)
(7)Ver o excelente e consistente trabalho de VEIGA Fº, Alceu de A.; GATTI, Élcio H. e MELLO, Nilda T. C. O Programa Nacional do Álcool e seus impactos na agricultura paulista, IEA/SAA, São Paulo, 1980. (Relatório de Pesquisa nº 8/80).
(8)Ver, dentre outros, os trabalhos de HOMEM DE MELLO, Fernando B. Agricultura de exportação e o problema da produção de alimentos. Estudos Econômicos 9(3), São Paulo, 1980 e HOMEM DE MELLO, Fernando B. Disponibilidade de alimentos no Brasil e impactos distributivos, IPE/USP, SãoPaulo, 1982a (Trabalho para Discussão nº 44).
(9)Ver GONÇALVES, Sheila Pereira, GONÇALVES, José Sidnei & NEVES, Evaristo Marzaba Inovação tecnológica, produtividade e preços ao consumidor de feijão no Estado de São Paulo, 1970-2005. ANAIS DO XLV CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, realizado em Londrina (PR), de 22 a 25/07/2007, pela Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural (SOBER) (Resumos e integra em CD)
(10)Ver GONÇALVES, José S.; SOUZA, Sueli A.M.; RESENDE, José V.; "Pesquisa e produção de alimentos: o caso do arroz em São Paulo", Revista Agricultura em São Paulo, 36 (2):171-199 ,1989.
(11)Ver GONÇALVES, José S. & RAMOS, Soraia de Fátima. Algodão brasileiro 1985-2005: surto de importação desencadeia mudanças estruturais na produção. Revista Informações Econômicas 38(1): 54-64, 2008.
(12)Ver GONÇALVES, José S. & SOUZA, Sueli Alves Moreira Agropecuária paulista: especialização regional e mudanças na composição de culturas de 1969-1971 a 2002-2006. IEA-APTA, São Paulo. 2008.mimeo.
(13)Mais uma vez sugere-se a leitura do excelente e consistente trabalho de VEIGA Fº, Alceu de A.; GATTI, Élcio H. e MELLO, Nilda T. C. O Programa Nacional do Álcool e seus impactos na agricultura paulista, IEA/SAA, São Paulo, 1980. (Relatório de Pesquisa nº 8/80).
(14) Ressalte-se que quem está defendo essa posição não pode ser confundido com ecologistas sectários, uma vez que os mesmos autores produziram textos mostrando a inaplicabilidade da legislação atual sobre reserva legal na agropecuária paulista, o que exigira recompor 3,7 milhões de hectares com mata nativa (Ver GONÇALVES, José S. & CASTANHO FILHO, Eduardo Pires. Fundamentos econômicos e sociais para o debate sobre a reserva legal em São Paulo: obrigatoriedade, impactos e proposta de aprimoramento da legislação. HECTA/ÚNICA, 2006. 53 pag. mimeo.) e também que não fazem sentido as pressões ambientalistas de tornar obrigatória sem qualquer período de carência, a proibição da queima da cana como preparação para a colheita. Isso geraria desemprego em massa de inempregáveis noutra atividade e impediria a colheita das safras em curso pela incapacidade da oferta de colhedeiras atender è demanda derivada da proibição da queima (Ver GONÇALVES, José Sidnei & SOUZA, Sueli Alves Moreira Prevalência da legislação ambiental federal e exigência de eia-rima: quando a preservação do meio ambiente coloca em risco a possibilidade da sobreviência humana IEA-APTA, São Paulo. 2008.mimeo).)
(15)Ver essa discussão em torno da tentativa da Prefeitura de Capão Bonito (SP) em tentar impedir proibição em legislação municipal citada na discussão sobre queima da cana para colheita referida na nota 14.

Autores:

José Sidnei Gonçalves, Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (e-mail: sydy@iea.sp.gov.br)

Sueli Alves Moreira Souza, Economista, Pesquisadora Científica do IEA/APTA (e-mail:sueli@iea.sp.gov.br).
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