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É preciso bulir na bula: alimento sadio e a questão da contaminação com agrotóxicos | |||
São Paulo, 23 de junho de 2008 | |||
Na última semana, a que corresponde ao período de 21/04/2008 a 27/04/2008, foi amplamente divulgada a notícia relativa ao monitoramento da qualidade de alguns alimentos comercializados no Brasil quanto à contaminação por agrotóxicos que revelou altas porcentagens de inadequação (1). O fato é que os resultados divulgados pela ANVISA, tal como estão apresentados e vêm sendo tratados pela mídia de todas as modalidades, em especial a televisa, pode gerar reações dos consumidores que possam ser preocupantes. Afinal, em especial para os produtos com elevado percentual de amostras que apresentaram resultados insatisfatórios – alface (40,0%), morango (43,6%) e tomate (44,7%) (3), os números são assustadores. Mas há que se realizar a inferência correta desses resultados estatísticos para que seja apresentada aos consumidores uma análise mais consistente da realidade em termos dos reais impactos à saúde. Por certo, há que se ressaltar o fato grave detectado pela ANVISA, correspondente à “detecção de monocrotofós na cultura de tomate, ingrediente ativo que não tem mais uso autorizado no Brasil desde 30/11/2006, em virtude principalmente de sua elevada toxicidade aguda e neurotoxicidade, o que faz necessário uma fiscalização mais eficaz pelos órgãos competentes”(2). Por certo, qualquer que seja o critério utilizado para avaliar a presença de resíduos de agrotóxicos, a defesa da produção e comercialização de alimentos sadios não permite tolerar sobre quaisquer pretextos, o uso de agroquímicos de uso expressamente proibido em território nacional. Também no tomate, há outra preocupação relevante no relatório da ANVISA, que mostra que “também é possível verificar que agrotóxicos autorizados para determinada cultura, mas com restrições quanto ao modo de aplicação devido a sua elevada toxicidade aos trabalhadores rurais, ainda estão sendo utilizados no campo de forma indevida. Como por exemplo, podemos citar a detecção de resíduo de metamidofós em tomate. Atualmente o metamidofós é autorizado para a cultura de tomate industrial em função do modo de aplicação, que deve ser exclusivamente via trator, pivô central ou aérea. O equipamento de aplicação costal não é autorizado para o metamidofós em função da toxicidade para o aplicador, desta forma este ingrediente ativo não está autorizado para o tomate de mesa, cujo modo de aplicação é menos tecnificado”(2). Ainda que nem todo tomate de mesa tenha o aludido “modo de aplicação menos tecnificado”, sendo empregado a pulverização por trator, a busca de coibir práticas agropecuárias que representem um risco à saúde do trabalhador corresponde a uma postura correta e elogiável. Assim, há que se ter atenção com as “condições de trabalho dos agricultores, principalmente para aqueles com menos recursos financeiros e menor nível de instrução, realidade de boa parte dos trabalhadores rurais brasileiros. Estes trabalhadores geralmente utilizam equipamentos de aplicação manual, pouco ou nenhum tipo de Equipamento de Proteção Individual (EPI), ficando mais expostos aos agrotóxicos e conseqüentemente às intoxicações agudas e crônicas por eles causados” (2). Afinal só faz sentido o objetivo de produção e distribuição de alimento sadio se esse processo for realizado por trabalhadores com garantia de saúde. Feitas essas considerações no sentido de que se mostra meritório todo e qualquer esforço de monitorar a qualidade dos alimentos no Brasil., há que se discutir questões não consideradas que correspondem à causa do problema, contribuindo assim para que sejam buscadas e tomadas medidas que o solucionem. A primeira questão a ser levantada consiste na inferência correta das estatísticas apresentadas no relatório da ANVISA que de forma alguma autorizam posturas de condenação de dado alimento para consumo. Excetuando-se os casos do monocrotofós e do metamidofós encontrados nas amostras de tomate, há que se realizar a consistente interpretação dos demais resultados. Afinal o que se têm é “a ocorrência de resultados insatisfatórios identificados nas amostras monitoradas no Programa - ou seja, resultados apresentando resíduos de agrotóxicos não autorizados para a cultura (NA), ou níveis de resíduos acima do Limite Máximo de Resíduo (LMR) - indicam a necessidade de se tomar medidas corretivas no manejo de agrotóxicos no campo, para que sejam usados de acordo com a boa prática agrícola e a indicação da bula” (2). No caso dos níveis de resíduos acima do LMR, verificados no morango, banana, mamão e laranja, trata-se do uso do agrotóxicos ou em volume acima do permitido ou –como se mostra prática mais comum nesses casos- de que o agropecuarista não observou o período de carência do produto, ou seja, não esperou o número de dias necessários após a aplicação do agrotóxico para que pudesse ser feita a colheita e comercialização, encaminhando assim produto inadequado ao mercado(2). Neste caso a maior rigidez na aplicação das normas do receituário agronômico e o estímulo às boas práticas de produção podem encaminhar a solução do problema. Já no caso dos produtos “apresentando resíduos de agrotóxicos não autorizados para a cultura (NA)”, a cautela na interpretação dos resultados se mostra fundamental pois, se é verdade que se aplicou produto não autorizado, de outro nada permite afirmar que isso seja danoso à saúde humana. E isso pode ser a maioria dos casos de inadequação. Há que se pensar esse problema da ótica do produtor, que não encontra produtos registrados para aplicar em algumas culturas – as denominadas pequenas lavouras-, dado que as empresas agroindustriais de insumos, pela complexidade operacional e pelos custos do registro de agrotóxicos no Brasil, simplesmente não registram seus produtos para algumas lavouras cuja dimensão do mercado potencial de uso não seja expressiva. E como para cada ingrediente ativo está relacionado dado patógeno ou rol deles, por similaridade e para não perder sua produção o agropecuarista se vê obrigado a utilizar dado agrotóxico não registrado para sua lavoura específica, mas disponível para outra de características muito próximas. Nas três culturas que apresentaram o maior percentual de amostras insatisfatórias isso fica muito nítido, quando se consulta o Sistema de Agrotóxicos Fitosanitários (AGROFIT) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). No caso do alface, por exemplo, o uso do mancozeb (ditiocarmabato) não é registrado mas esse produto é autorizado para aplicação em brócolis, couve e couve flor. Na mesma cultura não se têm registro para metiram que é autorizado para batata, cebola tomate e uva, o mesmo correndo com o propineb registrado para cebola, pimentão, tomate e uva. No conjunto do alface e do morango não se tem registro para o acefato que, no entanto, é autorizado para uso em brócolis, pimentão, repolho, rosa, soja e tomate. Já no morango, o clorotalonil não é registrado, mas o é para berinjela, pepino, pimentão e tomate(3). Esses exemplos exigem que, para que se concretizem decisões governamentais apropriadas de garanta alimento sadio para a população, sejam repensados os mecanismos de registro e de monitoramento do uso dos agrotóxicos no Brasil. Há que se ter nítido que não se obtêm alimento sadio se essa prática não for tornada possível nas operações de produção no campo. E, enquanto não tiver disponível um arsenal de produtos registrados que equacionem os prejuízos causados por fungos e insetos nas suas lavouras, como cada agrotóxico tem um espectro de agentes causais para os quais têm ação eficaz, o agropecuarista vai aplicá-lo. E pode estar agindo com a maior responsabilidade possível escolhendo por similaridade com outras lavouras, produtos para aplicar na sua. Se não tem produto para dado agente causal de prejuízos sérios nas plantações de alface, mas tem para couve, vai fazer essa opção. Se não tem produto registrado para morango, mas têm para berinjela utilizará o mesmo procedimento. Para o tomate em relação o próprio morango e vice-versa as decisões são similares e devem ser tomadas a tempo para que os prejuízos não tomem proporções de inviabilizar o agropecuarista enquanto agente econômico. Em função dessa constatação, há que se reler o relatório da ANVISA com as limitações enfrentadas do lado da produção, que o uso não autorizado não necessariamente implica em danos à saúde. Isso para que o consumidor seja corretamente informado e que seja pensada uma remodelação do Sistema de Registro de Agrotóxico do Brasil. A lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, “estabelece que os agrotóxicos só podem ser utilizados no país se forem registrados em órgão federal competente, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura” (3). E o Decreto nº 4.074, de 04 de janeiro de 2002, “que regulamentou a Lei, estabelece a competência para os três órgãos envolvidos no registro de agrotóxicos: Saúde (Anvisa), Agricultura (MAPA) e Meio Ambiente (IBAMA). O Ministério da Saúde - através da Anvisa - é responsável, dentre outras competências, pela avaliação e classificação toxicológica de agrotóxicos, e junto com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no âmbito de suas respectivas áreas de competência, pelo monitoramento dos resíduos de agrotóxicos e afins em produtos de origem vegetal” (3). Desde logo, a primeira medida no sentido da construção de um eficiente, eficaz e efetivo aparato regulatório para a concretização de uma política consistente de alimento sadio deveria ser a unificação de competências, definindo apenas uma agência governamental para cuidar desse tema, e a mesma deveria estar subordinada ao ministério que cuida da produção de alimentos, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Isso não apenas corresponde à uma moderna e fundamental atribuição que deva ser incorporada de forma prioritária a esta Pasta que, de uma estrutura voltada para o Estado Desenvolvimentista focado apenas na produção que dava conta das transformações da agricultura até a década de 1970, passe a se estruturar na lógica do Estado da Regulação como demanda expressa da sociedade e dos desígnios das mudanças setoriais em curso. De outro lado, pensando na necessidade de que a população tem direito à garantia de alimento sadio e para isso há que se ter produção a custos e em quantidade compatível com o tamanho e o perfil da demanda, que seja equacionado o problema do custo do registro de agrotóxicos para as “pequenas lavouras”, evitando-se que seja condenado como não autorizado o uso correto do ponto de vista da saúde pública de dado ingrediente ativo. E, de outro lado, há que se aprimorar os procedimentos metodológicos das ações de monitoramento dos resíduos de agrotóxicos em alimentos, aprimorando o precário – e por isso gerador de sérias injustiças - sistema desenvolvido pela ANVISA. Por certo, o que se tem é melhor que nada, mas não dá para conviver com seus impactos perversos na economia da agricultura. A primeira deficiência é que apenas permite dizer que tais produtos apresentam elevados percentuais de amostras insatisfatórias – no caso recente alface, morango e tomate-, mas não identifica nem onde nem que agricultor procedeu de forma indevida, condição essencial para ação corretiva seja técnica ou punitiva. Exemplo disso é que sendo identificado monocrotofós em tomate de dado agricultor de dado local, o que é proibido, a respectiva lavoura deveria ser interditada. E isso a sistemática da ANVISA não permite. E os produtores de alface, tomate e morango que dada a elevada especialização realizam com perfeição as boas práticas agropecuárias no uso e manejo de agrotóxicos – e eles existem e não são poucos- também merecem ser penalizados com a restrição de demanda à sua produção com impactos sobre os preços. A divulgação genérica tal como foi procedida leva exatamente a penalizar também quem faz as coisas direito, gerando um enorme desestímulo à prática do uso consciente dos agrotóxicos. Afinal, não há qualquer mecanismo consistente do ponto de vista econômico que promova diferenciação de produtos mediante a garantia da aplicação de boas praticas. E a generalização tal como está concebido o relatório da ANVISA caminha na contramão da solução econômica, que deve apostar exatamente no oposto. Ou seja, na criação de um sistema de diferenciação de produtos com qualidade certificada e rastreada do alimento sadio, do ponto de vista, dentre outras exigências, de que estão observados os procedimentos necessários quanto à aplicação de agrotóxicos. A segunda deficiência - não levada em conta na divulgação e na repercussão midiática – é que se trata de detecção de contaminação depois que o consumo do produto já se efetivou. O relatório da ANVISA apenas permite informar –aceita sua metodologia- que durante o ano de 2007 – o ano passado- os consumidores brasileiros de alface, tomate e morango consumiram produtos com resíduos de agrotóxicos não autorizados, ou autorizados, mas acima dos limites máximos de resíduos, ou ainda com a presença de resíduos de agrotóxicos proibidos. Mas o consumo já se efetivou e o mal – se decorrer do mesmo - já está feito e nada autoriza as reportagens transpondo para o presente, contaminações detectadas no passado e sem a determinação de onde e quando. Mais uma vez a certificação da qualidade de produtos e processos, envolvendo as boas práticas no uso de agrotóxicos, estimulando a diferenciação de produtos, se mostra fundamental. Mas não se trata de uma sistemática simples de ser adotada, principalmente porque isso implica em custos com reflexos nos preços finais aos consumidores, e parcela expressiva dos mesmos não chancelam mecanismos diferenciadores da qualidade. Exemplo típico foi a tentativa do Governo do Estado de São Paulo de estabelecer selo diferenciador de boas práticas para o morango, ação que foi abandonada, pois não produziu uma resposta adequada do consumidor à atitude de diferenciação. Enfim, a edificação de mecanismos regulatórios que conduzam à garantia de alimentos sadios no Brasil ainda exigirá anos de formulação e implementação de políticas públicas, as quais implicam no redesenho organizacional, estrutural e conceitual do próprio aparelho estatal. É a construção do novo Estado da Regulação em substituição do Estado Desenvolvimentista focado apenas na produção. No caso dos agrotóxicos, muitos passos e muitos relatórios com detecção de resíduos ainda serão apresentados e repercutidos. De imediato, entretanto, nesse caso há que se remodelar ao menos o sistema de registro, tornando-o menos oneroso para as pequenas lavouras, evitando-se assim que, práticas corretas de utilização no tocante a não produzirem danos à saúde pública, sejam condenadas sob o rótulo de uso não autorizado. É preciso bulir na bula. José Sidnei Gonçalves: sydy@iea.sp.gov.br Sueli Alves Moreira Souza: sueli@iea.sp.gov.br PESQUISADORES DO IEA NOTAS (1) Um amplo conjunto de notícias foi veiculada a partir da divulgação da divulgação dos resultados da pesquisa da ANVISA, tanto na mídia impressa como televisiva. Dentre estas ver a matéria “Tomate, alface e morango são os mais contaminados por agrotóxicos, mostra ANVISA”. Disponível em http://economia.uol.com.br/ultnot/valor/2008/04/23/ult1913u87368.jhtm. 23/04/2008 - 15h39. Acessado em 24/04/2008. (2) Ver Nota Técnica de divulgação de resultados do “ Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) do Ministério da Saúde”.Brasília 10 de abril de 2008. Disponível em http://www.anvisa.gov.br/toxicologia/residuos/index.htm Acessado em 26/04/2008. (3) Uma consulta ao AGROFIT (Sistema de Agrotóxicos Fitosanitários) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), disponível em http://extranet.agricultura.gov.br/agrofit cons/principal_ agrofit_cons , permite evidenciar toda a magnitude de casos. Acessado em 26/04/2008. |
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