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Crise de alimentos, pesquisa e biocombustíveis | |||
São Paulo, 4 de junho de 2008 | |||
A discussão da crise de alimentos tem produzido posicionamentos que, exacerbados na sua leitura isolada, criam uma situação de absoluta confusão no entendimento da realidade. Tendo em vista que os preços internacionais dos principais produtos e/ou insumos das cadeias de produção agro-alimentares mostram crescimento desde a segunda metade do ano passado, muitos tentam defender a idéia de que se trata de oportunidade para a agricultura brasileira. Isso porque os prognósticos são de que os preços, mesmo que recuem, não voltarão aos patamares anteriores à eclosão da crise atual, que nada mais é que a exacerbação de uma realidade latente de fome que assola principalmente o mundo mais pobre. Para outros, essa opção desaguará num desastre da ótica social pela volta da carestia dos alimentos. Várias questões têm sido suscitadas e nem sempre convenientemente esclarecidas nesse debate, notadamente porque dão conta da inserção brasileira nesse contexto. Uma dessas questões consiste no impacto da opção pela produção de biocombustíveis sobre a produção de alimentos. Desde logo, há de se pontuar que a experiência brasileira de promover a expansão canavieira para produção de álcool combustível não pode ser caracterizada como responsável pela crise de alimentos. Isso ainda que seja verdade que nas décadas de 1970 e 1980, quando foi implementado o Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL), a conseqüência da ampliação do plantio de cana, notadamente em terras paulistas, revela-se nos impactos sobre a produção de alimentos foram expressivos e mensurados. No plano social isso sustentou o amplo debate centrado na dicotomia entre estímulos para produtos exportáveis (e dentre esses a cana) e a eclosão de movimentos políticos de luta contra a carestia que dominaram a agenda nacional em pleno processo de redemocratização. Isso corresponde a um fato histórico sobre o qual não há qualquer contestação possível dada à qualidade do debate e dos estudos econômicos que contextualizam a realidade vivida nessas décadas. A realidade atual se mostra distinta, nem como farsa nem como tragédia, como se manifestam as tentativas de repetição da história. Na verdade, desse debate e das condições criadas pela transformação da agricultura dos anos 1970 emergiu a solução brasileira de superação dessa dicotomia alimentos versus energia. Mas muitos, numa leitura por vezes ahistórica e por outras ideologizadas, não apreendem essa dimensão. As mudanças estruturais dos anos 1970 foram decisivas com a implantação do padrão agrário em que se formam as cadeias de produção agro-alimentares em que uma das características fundamentais está na especialização regional, que criou bases produtivas modernas, fora do eixo da expansão canavieira, da produção de alimentos em escala. Olhando para São Paulo, onde a cana expande-se em todas as décadas pós-1970 e, com isso, ampliou a área plantada em torno de 4 milhões de hectares, não apenas pastagens deram lugar a essa lavoura. E não somente ela avança, mas também a soja, a laranja e as lavouras florestais. Muitas lavouras perderam área cultivada, mas cada qual ajustou-se de forma distinta a essa situação inexorável da expansão da cana que, quando deixou de ser estimulada, com o abandono do PROÁLCOOL do final dos anos 1980 em diante, foi catapultada pelos preços internacionais do açúcar.Aliás, pouco se tem dito a respeito de que a defesa da política brasileira de produção de álcool de cana normalmente ganha destaque quando a crise no mercado mundial do açúcar se manifesta, quase sempre ajudada pela crise do petróleo que exacerba os preços dessa fonte de energia. Foi assim nos anos 1970, quando dois elementos se fizeram presentes de forma concomitante - preços baixos do açúcar no mercado internacional e elevação exacerbada dos preços do petróleo -, levando à formulação e execução do exitoso programa brasileiro de álcool combustível. Depois de exatamente três décadas, o que se verifica desde o fim do ano de 2006 são as escaladas altistas dos preços internacionais do petróleo, que muitos prognosticam a possibilidade de atingir patamares até mais elevados que nos anos 1970 e, mais uma vez, preços internacionais do açúcar no mercado internacional recuando de 2006 para 2007. Tanto assim que os preços da cana despencaram no mercado brasileiro e não se tem mais notícia de pressões de demanda que levarão a impactos para cima dos preços do açúcar e do álcool no mercado interno. Mas, para que não se tenha a impressão de repetição da história como farsa – e que não se culpe a cana pela tragédia dos alimentos-, as similaridades param nestes pontos destacados. A escalada do álcool combustível neste século XXI traz nas suas raízes elementos novos, como a magnífica inovação representada pelos motores “flex”, que repuseram a autonomia dos consumidores na escolha do combustível para abastecer seu veículo, e a grande comoção representada pelas mudanças climáticas envolvendo a necessidade de redução da emissão de gases poluentes – com uso de energia limpa. Assim, formam-se as condições que determinam o novo ciclo de expansão canavieira, ainda concentrada em terras paulistas, mas que já inicia movimentos de transbordamento para outras unidades da federação brasileira. E os impactos na produção de alimentos? Como afirmado acima, a solução para a crise gerada pela expansão canavieira dos anos 1970, que foi impulsionada notadamente na década de 1990 com a superação da carestia vivida nos anos 1980, garante ao Brasil uma condição peculiar de poder expandir a cana em terras paulistas sem afetar de forma decisiva a produção de alimentos. A conta já foi paga e correspondeu ao sofrimento vivido nos anos 1980, em especial pela população mais pobre das zonas urbanas. E a solução consistiu na criação de espaços regionais especializados na produção de alimentos como decorrência da generalização do padrão agrário na agricultura brasileira, levando a ganhos de escala não apenas nas lavouras, mas notadamente nas agroindústrias processadoras e outras estruturas do fluxo produção-consumo. Isso traz como elemento intrínseco a determinação da especialização regional em dadas atividades superando a pretérita lógica da agropecuária diversificada que, nessa concepção estrutural, deixou de ser eficiente. Isso ocorreu com o feijão, que se modernizou e concentrou-se primeiramente no Sudoeste Paulista. Depois essa base técnica irradiou-se por outras regiões brasileiras formando a complementaridade de safras que permite produzir feijão novo o ano todo – tendendo a preferência explícita do consumidor – e com isso os preços em valores constantes são atualmente, em condição de normalidade produtiva em especial de clima, correspondentes a em torno de um quarto do vigente no início dos anos 1970. Formando a dupla alimentar fundamental com o feijão, o arroz que foi substituído pela cana, notadamente o de cultivo de sequeiro das áreas de renovação de pastagens, também sofreu significativa especialização regional, concentrando-se em cultivos irrigados com elevada produtividade e tipo de grão, que atende à exigência dos consumidores e que se concentra nas terras gaúchas. Os ganhos de produtividade dessas duas lavouras de alimentos básicos foram estupendos e decorrem, além da especialização regional que determinou ganhos expressivos de escala na produção e na logística, de contribuições inestimáveis da pesquisa pública estadual, no caso as realizadas pelo Instituto Agronômico do Estado de São Paulo (IAC), que atualmente integra a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), da Secretaria da Agricultura do Governo do Estado de São Paulo, e pelo Instituto Riograndense do Arroz (IRGA), do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Fundamental frisar isso para que as conquistas das organizações estaduais de pesquisa não sejam creditadas de forma indevida à importante e exemplar instituição federal representada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), orgulho da ciência nacional. Na inovação para os alimentos como feijão e arroz, o papel das políticas públicas estaduais foi decisivo para superação da carestia. E também o foi com a criação das técnicas de ocupação das terras ácidas nos cerrados paulistas no final dos anos 1960 e a criação da soja tropical – melhoramento genético que gerou as variedades IAC menos dependentes do fotoperíodo - nesse mesmo espaço pela pesquisa paulista, cujos resultados alastraram-se pelo Sul-Sudeste e depois para o Brasil Central nas décadas seguintes. O café, por exemplo, foi desaprisionado da eterna dependência da terra roxa nos anos 1950 com a criação da variedade que apropriadamente foi chamada IAC Mundo Novo, e com isso pode dar uma reviravolta radical na trajetória de seus caminhos, que antes apontava para o Sul_ Vale do Paraíba, Mogiana, Alta Paulista e Norte do Paraná_ e passou a ocupar terras no sentido norte com cafezais de qualidade do cerrado mineiro e avançando até pela Chapada Diamantina baiana. Tal como o café, a soja tropical, criada em laboratórios paulistas, promoveu verdadeira revolução na agricultura brasileira, ampliando lavouras modernas em terras paulistas, num movimento que transbordou para as terras paranaenses e gaúchas, onde incorporou a inovação do plantio direto e, aplicando as experiências de cultivo em terras ácidas testadas no cerrado paulista, produziu um avanço singular nos cerrados do Brasil Central e do Oeste do Nordeste Brasileiro ganhando expressão em terras equatoriais. A expansão da soja produziu impacto na produção de alimentos, inclusive com a oferta de produtos de qualidade. A magnífica expansão da soja ampliou também a oferta de um produto fundamental representado pelo farelo de soja_ a commodity principal do complexo da soja no mercado internacional_ e com isso amplificou a geração de divisas via exportação. A oferta crescente desse grão propiciou a construção da moderna cadeia de produção de carne de frango, que passou a ser a principal carne consumida no Brasil superando a carne bovina. Além de estar na base do moderno complexo protéico-animal dos granjeiros, a soja_ que também foi “expulsa” das áreas de renovação de pastagens na expansão canavieira paulista_, aumentou a oferta de outro alimento relevante representado pelo óleo de soja, que substituiu a preços muito inferiores o óleo de amendoim e de algodão e também a banha de porco na alimentação popular. Desse modo, a redução drástica da área de amendoim pela expansão canavieira paulista dos anos 1970 em diante teve irrelevante impacto na produção de alimentos dada à substituição pela soja. Assim, ao perder expansão em termos de cultivo nas áreas de renovação de pastagens e mesmo em lavouras não inseridas na clássica integração lavoura-pecuária, a produção de amendoim não representou constrangimentos maiores. Processo similar se sucedeu com o algodão que, nos anos 1970 já apresentava o transbordamento do território paulista com a liderança na cotonicultura nacional assumida pela produção paranaense. As tecnologias da pesquisa pública estadual paulista e paranaense –sempre em sintonia - sustentaram o sucesso do algodão meridional que libertou o Brasil da dependência de produto importado por mais de 60 anos até que tal sistema sucumbisse à desastrosa abertura do mercado brasileiro nos meados dos anos 1990. Mais tarde, uma releitura dessa base técnica aplicada em mega-algodoais dos cerrados com emprego de variedades estrangeiras criou a nova cotonicultura brasileira. De qualquer maneira, a expansão canavieira se de um lado levou à substituição do algodão em terras paulistas – em especial nos sistemas de arrendamento na renovação de pastagens -, de outro teve como corolário a criação das condições noutro espaço geográfico para a cotonicultura moderna. A expansão canavieira paulista para produção de açúcar e álcool produziu impactos decisivos na produção de alimentos nos anos 1970 e 1980. Mas, na década de 1990 em diante, a sociedade brasileira – após haver pago o preço da carestia na década anterior – realizou transformações que criaram condições peculiares de sucesso para a atual decisão de produção de bioenergia da cana, uma vez que envolve mais que álcool, ampliando para uma gama de atividades como a cogeração. Assim, da ótica da experiência brasileira, a maior área de cana pode ser feita sem substituir áreas de plantio de alimentos, dada a realização do passado em que alguns produtos substituíram outros com vantagens – óleo de amendoim pelo óleo de soja -, outros alimentos como proteína animal de qualidade tiveram produção multiplicada – carne de frango- e a especialização regional criou bases modernas de produção em outras regiões – feijão, arroz, algodão. E, na frente da trajetória da expansão canavieira, não ocorrem áreas expressivas de produção de alimentos. Para se chegar a tal conclusão, basta enxergar mais que as ocorrências localizadas dos novos municípios canavieiros para não se confundir o local com o global em plena vigência da globalização – a resposta está muito mais além que o alcance que possa ser captada pelo resultado de modelos econômicos, tipo “shift share”. E também há que se ter em mente a economia continental brasileira e não a lógica apenas paulista de mudança na composição de culturas. Afinal, numa economia continental integrada, São Paulo não pode almejar ser auto-suficiente em tudo, muito menos em alimentos, dado que essa lógica se mostra contraproducente da ótica da oferta e da demanda global num sistema onde a especialização regional corresponde à síntese dos ganhos em escala. E, se desafios existem, as respostas devem ser buscadas, dentre outras políticas, no investimento em conhecimento em inovações seguindo a trilha do sucesso da pesquisa pública paulista com a criação do café não dependente de terra roxa, a soja tropical e o feijão, além do algodão em parceria com a pesquisa estadual paranaense e do arroz da pesquisa governamental gaúcha. Ressalte-se que se a opção brasileira pelo álcool combustível de cana não produz efeitos negativos na produção nacional, isso não torna o Brasil imune aos efeitos da crise internacional de alimentos. Isso porque, de forma contraproducente, outros países substituem diretamente a produção de alimentos por energia - caso do etanol de milho norte-americano - numa realidade de aumento da demanda decorrente do aumento do consumo nos países em desenvolvimento como China e Índia, com efeito sobre os preços, em especial de milho, que sendo a segunda lavoura das agropecuárias brasileiras produtoras de alimentos –como o feijão por exemplo-, produz substituição indesejada. Nesse sentido, dada à globalização, os preços internacionais mais elevados dos alimentos puxam para cima os preços internos - vejam os índices da inflação de alimentos: soja, milho, trigo, arroz, carnes e leite - com o que as populações mais pobres que gastam mais com alimentação terão pressões indesejadas nos custos da sobrevivência. Ainda bem que a economia amplia empregos e salários, senão a realidade já seria dramática. Mas vejam, que da ótica da experiência brasileira na realidade atual, não há antagonismo entre ampliar a produção de cana para álcool combustível e a produção de alimentos. Por isso de nada adianta ficar combatendo internamente um aliado, confundindo-o num falso inimigo. Produz-se assim a resposta para a argüição fundamental da conjuntura, nos termos de que, nas condições da agricultura brasileira, mais energia no tanque não necessariamente representa menos comida no prato. JOSÉ SIDNEI GONÇALVES, Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. E-mail: sydy@iea.sp.gov.br DUARTE NOGUEIRA, Engenheiro Agrônomo, Deputado Federal pelo PSDB-SP, foi Secretario da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. E-mail: dep.duartenogueira@camara.gov.br |
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