Mercado
Mecanização da colheita da cana e desemprego estrutural
São Paulo, 4 de outubro de 2007    
A análise do processo de mecanização do processo produtivo da cana para indústria exige compreender que isso corresponde a uma das características inerentes ao desenvolvimento capitalista. A economia clássica já definiu que o capitalismo reproduz-se pelo desenvolvimento das forças produtivas e que um indicador desse processo consiste exatamente na elevação da composição orgânica do capital, na medida em que se reduz de forma crescente a participação do trabalho vivo em relação à soma de capital mais trabalho vivo. Como o elemento cada vez mais prepoderante do capital consiste na maquinaria (trabalho morto), o processo de desenvolvimento produz a exigência de proporção cada vez menor de trabalho vivo em relação ao trabalho morto (embutido na maquinaria), elevando de forma significativa a produtividade do trabalho (1).
Dessa forma, o desenvolvimento capitalista na agricultura produz de forma inexorável a irradiação e a ampliação da mecanização de processos. O futuro da agroindústria canavieira está sendo construído nesse sentido do movimento histórico, bem como ocorreu em toda agricultura brasileira. E esse processo se mostra necessariamente desempregador líquido quando se avalia a agropecuária (atividades da agricultura internas à propriedade rural), tanto assim que a produção brasileira cresceu em escala geométrica ainda que a nação tenha vivido um intenso processo de urbanização, que na verdade constitui-se num aspecto derivado da internalização dos padrões da denominada 2ª Revolução Industrial. Isso configurou a liderança brasileira na agricultura tropical e a destacada posição competitiva no mercado internacional. Na agricultura brasileira verifica-se um notável incremento da produtividade do trabalho desde os anos 1970 derivado exatamente da irradiação e ampliação da mecanização de processos agropecuários (2).

Agropecuária de escala e mecanização de processos

Na agricultura brasileira esse processo de mecanização de processos produtivos agropecuários se deu em dois momentos. Um que viveu o auge nos anos 1970 em que foram mecanizadas as operações de preparo do solo, plantio e alguns tratos culturais. Isso gerou a explosão do fenômeno caracterizado pela presença de imensa massa de trabalhadores volantes, gerando significativas migrações sazonais de trabalhadores para realizarem a colheita manual das diversas lavouras dinâmicas como café, cana, algodão, laranja. Trata-se da mais ampla expressão da denominada “agropecuária dos bóias-frias”. Como uma das características do padrão agrário da 2ª Revolução Industrial consiste exatamente na especialização regional na produção de matéria prima agroindustrial, definindo uma quase exclusividade do uso da terra no entorno das agroindústrias para que se obtenha a necessária economia de escala, fundamental para a competitividade e o desenvolvimento nacional, um aspecto econômico relevante desse processo consiste na elevada sazonalidade do trabalho.
Em função disso, durante alguns meses do ano, uma imensa massa de migrantes sazonais deixam suas regiões de origem e encaminham-se para as regiões produtoras dessas matérias primas para procederem a colheita. Essa constitui a face mais nítida do processo de trabalho na agricultura paulista e brasileira nos anos 1970 e 1980. Na agroindústria canavieira paulista nessa época, face à escassez de mão-de-obra, verifica-se um processo em que as empresas organizam mecanismos de atração de trabalhadores sazonais de regiões de agricultura deprimida como o Vale do Jequitinhonha, a Chapada Diamantina, e no período mais recente até do Piauí.
Esse processo, contudo, vem sofrendo importante modificação estrutural com a crescente mecanização da colheita que reduz de forma significativa a sazonalidade da mão-de-obra. No Estado de São Paulo, a participação da colheita mecanizada de cana se elevou de 25% em 2000 para 38% em 2006 , isto é, representou 1,3 milhões de hectares dos 3,44 milhões voltados para a indústria. Como apenas 25% da colheita mecanizada é realizada com cana crua, restam 2,58 milhões de hectares para serem colhidos sem o emprego da queima. Trata-se de processo que, no tempo histórico adequado produzirá a mecanização de todo processo produtivo, permitindo eliminar a queima da cana. Mas, da ótica dos trabalhadores, ele se revela altamente desempregador, gerando problemas sociais a serem equacionados.
E isso ocorre com toda agricultura brasileira de escala, sendo um fenômeno que se generaliza dos anos 1990 em diante. Estudo recente analisou “as alterações na composição da mão-de-obra assalariada na agropecuária brasileira no período 1970 a 1995/96. Atenção especial é dada aos impactos das inovações tecnológicas e do desenvolvimento capitalista no setor agropecuário como determinantes da distribuição da mão-de-obra assalariada entre trabalhadores permanentes e temporários. Constatou-se que no período 1970 a 1985 houve crescimento da participação dos trabalhadores temporários no total de mão-de-obra assalariada empregada na agropecuária. No período 1985 a 1996 ocorreu o crescimento da importância dos trabalhadores permanentes no total de mão-de-obra assalariada. Esses dois movimentos contraditórios entre si se explicam pela dinâmica de adoção de inovações tecnológicas e pelo processo de desenvolvimento capitalista distinto que ocorreram nesses dois períodos”(3).
As conclusões do estudo supra citado são taxativas ao definir que “as novas tecnologias adotadas para as culturas tradicionais brasileiras são poupadoras de mão-de-obra, elas operam nessa direção independentemente dos preços relativos dos fatores de produção, pois, atualmente, seriam favoráveis ao trabalho humano, motivado pelos baixíssimos salários. Nesse sentido, o capitalismo na agropecuária avança e impõe novos paradigmas para as culturas tradicionais brasileiras. A composição da mão-de-obra altera-se em resposta ao novo ciclo tecnológico em curso no setor agropecuário” (3).
O resultado disso em termos de relevantes perdas de postos de trabalho está nítido noutro estudo recente, que “analisou mudanças ocorridas nos setores de atividade e na renda da população economicamente ativa residente na área rural em cinco regiões do Brasil, com base nos dados das PNADs de 1992 e 2002. Mostrou-se que a PEA rural e a PEA agrícola decresceram em todas as regiões e as únicas atividades que aumentaram sistematicamente sua participação no emprego total foram o emprego doméstico e o comércio. Os rendimentos da PEA cresceram cerca de 30% no período em termos reais, mas as rendas não derivadas do trabalho cresceram à frente dos rendimentos do trabalho, confirmando a importância das transferências na distribuição da renda rural” (4).
Noutras palavras, os estudos científicos acima relatados mostram que o processo de intensificação do processo de mecanização corresponde a uma tendência histórica de aprofundamento do padrão agrário sobre o qual se estruturou a agricultura brasileira e que o mesmo se mostra desempregador líquido. Para mitigar esse processo a única alternativa consiste na ampliação das atividades agropecuárias gerando um número crescente de postos de trabalho. Daí que a decisão de proibição de queima da cana, ao acelerar de forma desnecessária esse processo, produzirá como resultante um incremento do desemprego estrutural no Brasil. E os impactos negativos dessa medida não apenas não se darão totalmente numa dada região como conduzirá a uma perda de renda de populações residentes nas regiões mais pobres da nação, para quem a forma mais importante de obter alguma renda adicional consiste exatamente na migração sazonal para a colheita de cana. E isso implica num acirramento das condições de pobreza dessa massa humana, implicando a medida em significativo agravante da ordem pública.

Desempregado estrutural com elevada dificuldade de reversão

O Instituto de Economia Agrícola (IEA), quando da edição da legislação estadual de proibição da queima da cana já realizou avaliação dos impactos da medida, mostrando que “serão eliminados entre 86,5 mil e 230 mil safristas, número esse que poderá ser mais elevado, pois a hipótese de menor redução de emprego na verdade esconde a diminuição o emprego de safristas e aumento do emprego de operadores de máquinas”. Mais ainda questiona o processo de aceleração desse processo argüindo em nome de quem se defende essa perspectiva ao postular que ”em nome da multidão de safristas certamente não o é, e dada sua realidade periférica, afastam-se os problemas da queimada, mas não os da miséria e violência urbana. Essa é a contabilidade a ser levada em conta numa sociedade desigual que não gera oportunidades de emprego e renda compatíveis com a "inclusão" dessas massas marginais”(5).
Mais dramática fica a realidade de exclusão social com o aprofundamento da mecanização da colheita da cana troca-se um determinado perfil de trabalhadores por outro. Isso fica claro em estudo que constata que as usinas sucroalcooleiras no Estado de São Paulo já vêm realizando há alguns anos um aumento das exigências de escolaridade e de treinamento formal para os trabalhadores da lavoura da cana. Esse processo de aumento da exigência de qualificação da mão-de-obra, intenso nas usinas mais modernas nos anos 90, será acirrado na medida em que se elimina o safrista e todos os "incluídos" passam a ter escolaridade formal superior (6).
Recente pesquisa do IEA “estima que a introdução de máquinas na colheita da cana-de-açúcar desemprega cerca de 2.700 pessoas por safra para cada um por cento de área mecanizada”. Mais ainda ”Na avaliação dos especialistas do IEA, dificilmente o contingente formado por cortadores de cana será absorvido dentro do setor canavieiro ou dentro do setor agropecuário. Eles vêem essa dificuldade de retorno ao mercado de trabalho até mesmo em outros setores econômicos. Segundo os pesquisadores, antes da reinserção, é necessário que os trabalhadores passem por três fases importantes: motivação do indivíduo para que entenda seu papel dentro da economia brasileira e a importância de mudar de emprego; requalificação deste trabalhador na qual muitos passarão até mesmo pela alfabetização; e, por último, o acesso a cursos profissionalizantes para que possam exercer novas funções”(7).
Fica então nítido que da ótica do emprego, por mais nobres que possam parecer as iniciativas, não faz o menor sentido o encaminhamento de decisões abruptas de proibição da queima da cana. Isso porque essa transformação estrutural só pode se realizar no tempo. A proibição da queima da cana além de representar um estimulo à aceleração do desemprego dos safristas em dada região não implicará na ampliação de oportunidades de trabalho para operadores de máquinas, uma vez que se trata de pessoal qualificado não disponível no mercado e que somente poderá ser formado de maneira adequada com tempo e investimento em qualificação.
Mais ainda, mesmo que se pretenda implementar a mecanização, não há como obter máquinas para aquisição. A frota de colhedoras no Estado de São Paulo é estimada em 1050 máquinas, destas 50% são antigas e desatualizadas e tem uma eficiência de colher, em média, 1,2 mil hectares/safra. As máquinas novas colhem entre 1,4 e 1,9 mil hectares por safra. Portanto, para as condições atuais de cultivo, seriam necessárias cerca de 1200 máquinas novas . Esse número exigiria um investimento de R$ 960 milhões, considerando o preço da colhedora de cerca de R$ 800 mil. Deve-se ainda considerar os investimentos em transbordo, caminhões e tratores que acompanham o processo de mecanização - essa composição chega a R$ 2 milhões em média, o que representaria um total de R$ 2,4 bilhões de novos investimentos.
De acordo com informações da indústria de colhedoras de cana, a capacidade atual de produção é de 580 máquinas em 2007, para atender todo o mercado consumidor. Isto é, além da demanda paulista deverá atender as outras regiões produtoras de cana no Brasil, da América Latina e de demais países, o que mostra ser a produção insuficiente para atender a grande demanda existente no setor. A demanda em São Paulo por colhedora gira em torno de 535 máquinas/ano e o mercado dessas colhedoras tem encomendas com mais de 3 meses de espera. Em função disso, o cumprimento da medida de proibição da queima da cana enfrenta um óbice intransponível no curto prazo em função de que há que serem mobilizados financiamentos e exige uma capacidade que a agroindústria de bens de capital não possui, daí ser fundamental que seja realizada num cronograma para que esse objetivo seja alcançado.
Ao contrário do que se pode imaginar numa leitura superficial, não são os usineiros os principais e únicos atingidos pela medida. Há muitos fornecedores envolvidos no processo. Nesse sentido se mostra relevante lembrar que a medida se mostra discriminatória afetando uns de forma diferente dos outros. Como se sabe a cana para indústria consiste numa lavoura semi-perene, em que são realizadas colheitas anuais por cinco anos no mínimo. Logo, no mesmo espaço geográfico têm-se produtores com canas de 1ºcorte, 2º corte, 3º corte, 4ºcorte e 5º corte (alguns casos atingem 10 cortes). O prejuízo se mostra maior quanto mais recente o plantio, porque a decisão de colheita mecânica não se resume apenas a comprar uma máquina e passar a operar a colheita.
Há que se desenhar os talhões de forma compatível com esse processo mecanizado, com o que cada produtor deve se habilitar no uso das novas técnicas. Os plantios para corte mecanizado se dão melhor em variedades específicas de cana e exigem um cuidado especial com o manejo da praga cigarrinha da cana (que para ser controlada com métodos biológicos exige construção de bio-fábricas e aprendizado técnico). Em síntese, há óbices técnicos que implicam em perdas econômicas quando se decide realizar a colheita mecânica em canaviais desenhados para serem colhidos com queima. E os produtores de cana não serão penalizados de forma equânime.
Em função de todos esses argumentos há enormes perdas e significativas limitações técnicas e econômicas para que a decisão abrupta de proibição da queima da cana seja cumprida implementando-se a mecanização da colheita. Há ainda o caso das áreas com declividade superior a 12% em que se mostra impossível a operação eficiente da máquina de colheita. Por tais elementos a aceleração da mecanização da cana implica em elevados danos econômicos para trabalhadores e empresários criando condições para que sejam produzidos graves impactos sociais não apenas no horizonte visível do território paulista, mas em vários espaços do território brasileiro como a perda de emprego dos safristas que implicará na redução das oportunidades de obtenção de alguma renda pelos migrantes sazonais.

(1)ver dentre outros MARX, Karl. O Capital, Abril Cultural, São Paulo, 1984.
(2)ver GONÇALVES, José Sidnei, Crescimento do produto e conteúdo da produtividade na agropecuária brasileira do período 1975-2003. Revista Informações Econômicas, SP, v.37, n.8, ago. 2007) (disponível em http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=9045)
(3)ver a reflexão inserida no trabalho de STADUTO, J. A. R.; SIKIDA, P. F. A.; BACHA, C. J. C. Alteração na composição da mão-de-obra assalariada na agropecuária brasileira. Agricultura em São Paulo, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 57-70, 2004). (disponível em http://www.iea.sp.gov.br/out/publicacoes/pdf/asp-2-04-5.pdf).
(4)ver KAGEYAMA, Ângela. Mudanças no trabalho rural no Brasil, 1992-2002Agric. São Paulo, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 71-84, jul./dez. 2004) (disponível em http://www.iea.sp.gov.br/out/publicacoes/pdf/asp-2-04-6.pdf ).
(5)ver GONÇALVES, José Sidnei & SOUZA, Sueli Alves Moreira Proibição da queima de cana no Estado de São Paulo: simulações dos efeitos na área cultivada e na demanda pela força de trabalho. Informações Econômicas, SP, v.28, n.3, mar. 1998) (disponível em http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=967)
(6)ver BORBA, Maria M. Z. Adequação da força de trabalho rural na moderna agricultura da Região de Ribeirão Preto. Campinas: UNICAMP/IE, 1994. 255p. Tese de Doutorado).
(7)Ver a noticia “ Colheita Da Cana Desemprega 2.700 Pessoas A Cada Um Por Cento De Área Mecanizada” (disponível em http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=9076).

Autores:

José Sidnei Gonçalves, Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas, Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (e-mail: sydy@iea.sp.gov.br)

Sueli Alves Moreira Souza, Economista, Pesquisadora Científica do IEA/APTA (e-mail:sueli@iea.sp.gov.br).

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